Fazia muito tempo que um lançamento cinematográfico não causava tanto frenesi. Usando um esquema de marketing agressivo, uma inócua concorrência com Oppenheimer, de Christopher Nolan (que ajudou mais o filme dele), uma pegada afetiva e sentimental no público feminino, além é claro, de uma ótima e talentosa equipe por trás da produção, enfim chegou o dia da estreia do filme do ano, Barbie (idem, 2023). Com uma expectativa imensa, espera e muita agitação, o longa de Greta Gerwig aterrissa o mundo cor-de-rosa da boneca mais famosa do mundo nos cinemas do planeta essa semana.
Aquela máxima: todo dia ela faz tudo sempre igual é a mais pura rotina da Barbie esteriotipada. Morando no paraíso que é a Barbielândia, acorda cedo, cumprimenta as outras Barbies, vive na sua maravilhosa casa dos sonhos, desce de tobogã ou levitando os andares, passeia com seu carro rosa, vai a praia, conversa com as amigas, Barbies de todos os tipos e ainda tem tempo de flertar e depois ignorar o Ken. Afinal, todo dia é dia das garotas e o Ken é apenas um acessório no mundo perfeito das Barbies. Só que um dia Barbie começa a ter problemas existenciais, pensa na morte, seus pés pisam no chão (estão sempre preparados pro salto) e sofre com celulites. Para se livrar desses dramas repentinos, descobre, depois de visitar a Barbie Estranha, boneca renegada do reino delas, que precisa encontrar sua dona na vida real. Então Barbie parte com Ken para Los Angeles em busca de respostas e conhece um estranho mundo novo, dominado por homens e que vive a ilusão da inclusão e direitos iguais. Mas mal sabe ela que essa visita em busca de respostas pode acarretar uma revolução no seu antigo mundo ou abrir os olhos da falsa normalidade.
É imensurável o tamanho para a cultura pop e para os costumes da sociedade nas últimas décadas a importância da Barbie. Boneca que fez aposentar a era em que elas eram apenas bebês e as meninas apenas emulam o lado mamãe nas brincadeiras (o que é retratado de maneira divertidíssima no início do filme, numa alusão à 2001 – Uma Odisseia no Espaço), mas criou um padrão estético de beleza que por muito tempo perturbou meninas e mulheres do mundo todo. Também criou um mundo onde a Barbie era o que ela queria ser, desde médica, enfermeira, advogada ou apenas querer relaxar e se divertir. Fazer um filme sobre Barbie hoje em dia passaria despercebido se a incumbência não ficasse a cargo da genial Greta Gerwig. A diretora recria o mundo cor-de-rosa e plastificado das bonecas magistrais e é feito sob medida para aquela geração que tem entre 20 e 45 anos e que sonhava em ser, ter ou odiar a boneca.
O roteiro do filme é da diretora que divide a função com o também ótimo Noah Bambauch, é um liquidificador de referências, tanto à cultura pop, ao cinema, tem piadas certeiras, recheado por muita música, cor e até crítica, mas tudo de uma maneira elegante e sutil. Barbie não é um panfleto feminista agressivo, é um filme que critica privilégios masculinos, o patriarcado e a dificuldade de inclusão feminina no mercado e na sociedade, mas tudo com muito humor. O filme utiliza estereótipos para exemplificar o quanto ainda o processo é lento, mas possível. Não poupa o quanto a mulher sofre por padrões estéticos, a utopia da sociedade perfeita, a idiotice na representação dos machos alfa (responsável por hilariantes cenas), atira (sutilmente, é claro) até na Mattel, a empresa que fabrica a boneca, toda ela comandada por homens, mas vendendo produtos para meninas e mulheres. Uma aula de auto ironia, lembrando os produtos da empresa que fracassaram, como o boneco Allan (que tem ótimas tiradas no filme) e a Barbie grávida, que logo saiu de linha.
O filme tem uma narração em off no início, super engraçada, na voz de Helen Mirren. Margot Robbie excelente como sempre, esbanjando sua veia cômica como a Barbie “esteriotipada”. Ryan Gosling, perfeito como o Ken apaixonado pela Barbie, mas que se revolta contra seu mundo passivo ao conhecer o mundo dos homens; Will Ferrell, um pouco deslocado como o Ceo da Mattel; Kate McKinnon, excelente como a Barbie “estranha” (aquela que as crianças estragam); Michael Cera, como Adam; America Ferrera, como a verdadeira dona da Barbie, Gloria; Ariana Greenblatt, como a empoderada e poderosa Sasha, sua filha, além de participações de John Cena, Isa Rae, Dua Lipa e grande elenco.
Barbie com certeza vai justificar a sua tão aguardada espera. Brinca de maneira inteligente com o rico universo da boneca, é longe de ser um filme para crianças, mas vai acertar em cheio o lado afetivo e nostálgico de uma geração de mulheres. Inclusive quem é a dona da Barbie e a faz ter crises existenciais e estéticas é a personagem de America Ferrera, enquanto sua filha já é da geração que execra a boneca pela imposição de padrões e estereótipos (em uma cena muito engraçada que faz a Barbie chorar, ela faz um discurso sobre o assunto), um filme que mesmo parecendo ter sido feito para um nicho específico vai levar muito gente ao cinema e já é um sucesso antes mesmo de estrear. Como ponto negativo destaco o grau de pieguice da parte final e o excesso de protagonismo do Ken e seus outros “Kens”. Por mais que sirva de exemplo pra mostrar como o homem mal intencionado consegue contaminar um ambiente, acho que teve muito tempo para Kens no filme.
Concluindo, Barbie cumpre com louvor seu papel e a expectativa gerada por ele. É um filme divertidíssimo, inteligente, recheado de grandes piadas e gags visuais, usa muita ironia e denuncia de forma madura a sociedade atual e o quanto a sensação de inclusão e igualdade ainda é um sonho distante, mesmo com todos os esforços e causas de gênero. Prefere logicamente criticar mais o mercado e o capitalismo em si do que a empresa Mattel, que sempre lucrou com os estereótipos da boneca e os padrões que escravizaram meninas através dos tempos. Mas o principal: acerta em não generalizar e tipificar um vilão apenas, coloca a culpa no status quo patriarcal que vivemos e também serve como um exercício existencial, uma reflexão feminina sobre o papel que às vezes se impõe a uma mulher e quem realmente elas querem ser. Uma boneca que se torna subversiva quanto à ordem e desperta ao seu modo para a vida. E vamos combinar que Barbie já provou que as mulheres podem ser o que quiserem, astronautas, engenheiras, presidente, mães ou (por que não?), apenas serem felizes como elas são ou podem ser.