Marcelo D2 e um punhado de bamba em Porto Alegre
Tradição e modernidade. Por muito tempo essa junção, segundo alguns pesquisadores da música, entre eles Paulo César Araújo, é a chave mestra para o artista e sua obra ter o respeito tanto da crítica quanto do público. Sábado passado Marcelo Maldonado Gomes Peixoto, ou como todo o Brasil conhece, Marcelo D2, ícone vocalista e ícone do Planet Hemp, mostrou para o público gaúcho, no Araújo Vianna, seu novo show: Marcelo D2 e um Punhado de Bambas, onde o artista apresenta essa mistura, que faz ao menos desde 2003, mas hoje em dia é mais acentuada, de hip hop, rock e samba tradicional. E o NoSet conferiu essa eterna busca da batida perfeita do D2.
A casa estava com um excelente público, muita gente queria assistir esse Marcelo D2, com essa faceta cada vez mais acentuada. No centro do palco havia uma mesa com toalha branca e um altar aos seus orixás, com uma estátua de São Jorge e uma banda tocando em volta da mesa, como aquelas velhas rodas de bambas, invocando botequins, terreiros e o Cacique de Ramos. Marcelo D2 e sua banda, com direito a quatro vocalistas, sopros, violão de sete cordas, cuíca, pandeiro, surdo e tantan, por volta das 21h30min se postam ao palco e começam com a canção Povo de Fé, do último disco do artista, Iboru, de 2023. Na sua fase nova, mais espiritualizada, devoto de seus orixás e patuás, basta sua presença pra plateia levantar e não sentar mais. Até Clarear, uma das melhores do disco, mostra a conexão entre o artista e a plateia já em êxtase. Mostrando que seu disco está na boca do povo emenda mais uma, Fonte que Eu Bebo. Marcelo fala com a plateia, do quanto está feliz com essa fase, que esse disco apresenta sua nova faceta de um samba tradicional moderno.
Mostrando sua ode às vacas sagradas do ritmo, canta Delegado Chico Palha, sucesso do mestre Zeca Pagodinho. Como ponto negativo, mais uma vez em um show de samba, o som estava muito alto, a voz de Marcelo muito embolada e alta, e instrumentos de cordas quase sumidos, problema que foi sanado aos poucos, talvez a massa sonora do crossover samba e hip hop com uma roda de samba furiosa, deveria ter tido um carinho melhor da equipe de som do artista. Desabafo, sucesso de 2008, do disco A Arte do Barulho, faz mais uma vez o Araújo vir abaixo. Marcelo depois canta novamente para seus orixás, faz suas oferendas, evoca São Jorge e o povo também faz suas oferendas na platéia, fazendo a cabeça com muita erva sagrada, afinal é o show do D2 . Uma breve cantoria de A Batucada dos Nossos Tantãs, clássico do Fundo de Quintal, abre caminho pra 1967, essa de 1998, da fase do disco Eu Tiro é Onda, com Marcelo parecendo o velho cantor de hip hop, coisa que, ao meu ver, ainda faz melhor que como sambista. E a plateia entrou na onda curtindo o momento. Depois de mais homenagens aos seus guias de luz emenda outro clássico de Zeca Pagodinho, Maneiras, essa sim a cara do local, já que quem queria fumava e bebia, até o chopp era reposto de meia em meia hora. Castelo de um Quarto Só, de Renato da Rocinha, segue o baile, que com certeza, foi um dos mais animados que vi no local. Os telões com imagens antigas do Rio de Janeiro, de morros, favelas, brasileiros simples, um Rio antigo e pouco filmado, ilustravam o clima de povo do show e as origens do artista, que manda Meu Nome é Favela, do mestre Arlindo Cruz. Maldição do Samba, do disco de 2003, onde ele começou esse flerte com o samba, segue o script, conduzindo a massa. Destaque para um bocal vermelho de telefone antigo usado pelo artista fazendo um efeito de voz sensacional. Em Rompeu o Couro, de 2020, traz Luiza Peixoto, sua backing vocal e esposa. Aliás, entre as backings tinha uma filha do artista e uma sobrinha.
Qual É?, outro sucesso do disco À Procura da Batida Perfeita, faz a galera entrar em transe, essa sim um misto exemplar de samba com hip hop, onde Marcelo fica mais à vontade. Depois presta uma homenagem a Romildo Bastos, compositor de sambas entre pérolas, como o Mar Serenou, imortalizada na voz de Clara Nunes, cantando Gandaia, outra do seu último disco. Para Marcelo é outra do novo disco, que antecede ao clássico de Jorge Aragão, a lindíssima Lucidez, em que canta com a esposa, aí sim, num momento de roda de samba intimista. Água de Chuva do Mar, belo samba de Wanderley Monteiro, imortalizado por Beth Carvalho, faz o Araújo se tornar uma grande festa, a canção Cabô Meu Pai, dos três gênios, Luiz Carlos da Vila, Moacyr Luz e Aldir Blanc, mais uma imortalizada na voz do Zeca Pagodinho, segue a roda de samba em grande estilo e com um final apoteótico com o hino popular Zé do Caroço, levando o Araújo num êxtase de animação poucas vezes visto. Se Marcelo não parece um grande sambista, ou ao meu ver, ainda tem problemas com o estilo, repertório pra encerrar o show foi de primeira. Destaque para uma homenagem no telão pra Batatinha, sambista das antigas, cantando Direito de Sambar. Momento sublime.
Óbvio que com o clima quente, plateia ensandecida e aplausos sem fim, ele e sua banda voltam e atacam com dois clássicos do Bezerra da Silva, Malandragem Dá um Tempo e Semente, num clima de botequim, com a banda atacando de violão, cavaquinho e percussão e com a galera cantando junto. Marcelo muito pilhado canta de novo a ótima Até Clarear e no final, com um improviso fantástico, meio à capela, só com sons de pandeiros, ele e uma das suas backings cantam Do Fundo do Nosso Quintal, clássico das rodas do Cacique, em mais um momento emocionante, findando um belo show.
Acredito que muita gente ainda sinta falta do Marcelo do rap, rock, eletrônico, praia que ele surfou com autoridade. O novo D2, tomado pela religiosidade e pelo samba e a obsessão de fazer um novo samba, ainda derrapa, principalmente ao vivo, mesmo com uma banda maravilhosa ao estilo de samba de mesa. Parece que falta uma sintonia ainda em seu jeito agressivo de cantar e a malemolência e sublime doçura do ritmo. Mesmo inserido nessa batida desde 2003, e com um excelente disco de 2023, ao vivo, Marcelo apesar de dominar os palcos como poucos, ainda não tem total cadência, coisa que o Emicida conseguiu muito bem fazer, trazer a ternura e a força das letras para o ritmo. Mas, confio no Marcelo, que mesmo com seu punhado de bambas, ainda tem que pedir ao seus orixás ter mais suavidade e essência. Em resumo, uma noite excelente com um artista se reinventando musicalmente e espiritualmente e com seu fiel público que sai satisfeito e com a cabeça feita.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta