Uma das cenas mais legais e criativas do cinema de comédia vem do filme Austin Powers. Quando o espião interpretado por Mike Myers, em uma luta, acaba matando capangas que trabalham para o vilão e, na cena seguinte, mostra a família deles, a esposa com filho pequeno, os amigos esperando para beber juntos, ou seja, num filme de ação nunca paramos pra pensar que aquele bando de gente que apanha e toma tiro do mocinho, mesmo que tenha como chefe um vilão, é um ser humano que tem família, planos e sonhos. Mas que para a trama do filme é apenas mais um corpo estendido no chão. Nos games com abundância de violência, vida louca e matanças existem alguns personagens perdidos que só servem de sparing para os jogadores. E se esse personagem, um NPC (personagem sem controle, um coadjuvante dos games), cansado de tanta pancadaria tivesse vida e quisesse enfrentar essa dura “realidade”?. Mais ou menos essa é a premissa de Free Guy- Assumindo o Controle (Idem, 2021) que estreia essa semana, com a direção de Shawn Levy.
Free Guy: Assumindo o Controle – O enredo conta a história do bom rapaz, Guy, que todo dia faz tudo igual, acorda, toma seu mesmo café, fala com o mesmo amigo, trabalha num banco constantemente assaltado. Um dia ele se apaixona e quer mudar sua pacata vida. Só que Guy é um personagem de um realista game de ultraviolência, sucesso mundial e que devido a sua programação, possui uma inteligência artificial e pretende revolucionar o próprio jogo. O que deixa intrigado o casal de idealizadores e, principalmente, o dono da companhia de games que, furioso, pretende acabar com o “cara da camisa azul”.
Sham Levy talvez nos apresente o melhor filme de adaptação de vídeo game sem realmente adaptar jogo algum. Free Guy – Assumindo o Controle (aliás, a tradução dele em português é um trocadilho certeiro, já que Guy realmente assume o controle), apresenta um trabalho de metalinguística perfeito, efeitos espetaculares e um roteiro divertidíssimo. O roteiro, acima da média, feito a quatro mãos por Matt Lieberman e Zak Penn é o diferencial de qualquer outra adaptação do universo dos games para as telonas.
Com muita ação, piadas certeiras, situações absurdas, suspense e uma bela pitada de romance (os nerds também amam), além de diversos easter eggs, a história flui com um humanismo, misturando a realidade com o jogo e mostrando um cenário bem realista do universo dos games, com servidores caindo, youtubers da vida real dando seus pitacos, o vício que certos jogos que viram febre representam, tudo isso muito bem explorado e pontuado por efeitos visuais sensacionais principalmente quando o personagem Guy vira um jogador, coloca os óculos e vê como é um cenário de um jogo de ação. O que até pode ser visto de leve como um debate moral relativo ao uso da inteligência artificial e quanto eticamente a podemos manipular, além de uma crítica à extrema violência de certos jogos, banalizando mortes, acidentes, tiros e explosões, cenário onde nosso herói se rebela e quer apenas ser um cara do bem, e de camisa azul.
Ryan Reynolds está perfeito com misto de ingenuidade e coragem do personagem rebelde dos games, mostrando que é muito mais que Deadpool, dando um ar humano ao desumano ambiente dos games. Também é um dos produtores do filme. Taika Waititi, que recentemente nos deu de presente o Adolf Hitler mais engraçado do cinema, até tenta brilhar, mas soa caricato demais como o narcisista Antoine, ladrão de ideias e poderoso dono da empresa que produz e mantém o game Free City. A boa atriz Jodie Corner, a desenvolvedora Millie, que no jogo é Molotov Girl, e é responsável por quebrar a quarta parede do game se apaixonando por Guy, vai bem também interpretando os dois papéis e transmitindo coragem e estímulo ao personagem. Já Joe Keery, como Keys, amigo e apaixonado por Millie, tem uma atuação discreta que só deve agradar os fãs do Stranger Things… Lil Rerl Howery está engraçadíssimo como Buddy, o amigão de Guy que custa a entender a rebeldia do companheiro.
Outro mérito da película é que é um filme que, mesmo recheado de referências do mundo gamer, pode ser muito bem aproveitado pelo público leigo, que não terá dificuldade nenhuma de torcer pela jornada do herói Guy. Além, é claro, do filme ser um pouco sobre como somos reféns do cotidiano e que podemos nós mesmos sermos NPCs da vida real, vivendo rotinas inquebráveis e total falta de perspectiva de mudança e de buscar a felicidade. Às vezes basta um despertar, um impulso e uma pequena dose de coragem para enfrentar o mundo e ir atrás de mudanças. Isso, o “cara da camisa azul” faz muito bem, com o plus de se tornar celebridade mundial dos games por ter, literalmente, mudado a programada realidade.
Free Guy é uma bela diversão, um show de efeitos espetaculares pontuado por grandes piadas e um Ryan Reynolds realmente inspiradíssimo e que não precisa ser um gamer ou estar inteirado no assunto, e mesmo sendo um noob (novato em games) tem tudo para curtir muito o filme.