A fé é um tópico constantemente discutido, sempre envolto a polêmicas sobre como lidar com limites, até que ponto esse elemento interfere no relacionamento em família e em comunidade.
Parece estranho, mas esse é uma das premissas que pode ser vista no filme “O Diabo de Cada Dia”, novo thriller original da Netflix, dirigido por Antônio Campos, que também adaptou o roteiro, ao lado de seu irmão, Paulo Campos. Entre os produtores está o ator Jake Gyllenhaal. É baseada no livro “O Mal Nosso de Cada Dia”, de Donald Ray Pollock.
Pollock não só autorizou a adaptação, como também fez a narração do filme.
O centro da história é a família Russel e se passa entre dois estados dos EUA, Ohio (cidade de Knockemstiff) e Virgínia Ocidental (cidade de Coal Creek).
Primeiro conhecemos Willard Russel, criado em uma família extremamente religiosa de Knockemstiff, mas atormentado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, da qual sobreviveu, mas não antes de ter que sacrificar alguns companheiros de tropa, alguns que o fizeram perder a fé que tinha. Apesar disso, ele aparenta estar bem, aparenta não ter sequelas. Isso o faz ser alguém muito amável, mas, ainda assim, extremamente violento.
Embora sua mãe, Emma, quisesse que ele casasse com uma Helen Hatton, tendo até feito promessa para quando ele voltasse da guerra (se ele voltasse), Willard já havia se apaixonado por Charlotte, mesmo ainda nem sabendo seu nome. Ele se casa com ela, com quem tem um filhinho, Arvin, mas eles vão morar em Coal Creek. Enquanto Helen se casa com o jovem orador da igreja de Knockemstiff, Roy Laferty, da união nasce Lenora.
Apesar de todos estarem em volto a fé, alguns eventos vistos como macabros começam a acontecer. Pouco tempo depois de Lenora nascer Helen e Roy desaparecem, descobre-se que ela havia sido assassinada e ele era o suspeito do crime. Acontece que Roy, fanático religioso como era, havia recebido uma iluminação, que ele seria alcançaria uma graça caso mantasse a esposa e a ressuscitasse. Não tendo conseguido ressuscitar Helen, ele foge do local com o amigo, Theodore. Lenora se torna órfã ainda bebê, ficando aos cuidados da amiga de Helen, Emma, a mãe de Willard.
Enquanto isso, em Coal Creek, Willard havia recuperado a fé, mas não frequentava igreja, ele colocou uma cruz no quintal de casa e era um local de oração. Ensinou a Arvin a sempre ir lá orar, especialmente quando precisasse de respostas e soluções. Isso porque o garoto vivia apanhando dos colegas de classe. A fé dele também enfraqueceu enquanto via Charlotte morrendo de câncer, entrando em desespero, obrigando Arvin a o acompanhar em horas a fio de oração.
Quando a esposa faleceu, mesmo depois dos sacrifícios que fez (por meio da fé), Willard perdeu totalmente a fé e se matou, deixando Arvin órfão, aos 09 anos, e sozinho em uma cidade em que não tinha parentes. O próprio garoto que encontrou o corpo do pai e procurou ajuda, a força policial, liderado pelo arrogante Lee Bodecker, candidato a xerife/deputado da cidade.
Arvin, então, foi enviado para a casa da avó, em Knockemstiff, Emma agora cuidava de dois órfãos em sua casa, criando-os como irmãos. E de fato são, um protegendo o outro o máximo possível.
Sete anos se passam, Arvin se torna cada vez mais parecido com o pai, então, nada mais justo do que receber, como presente de 16 anos, algo que era dele, uma arma alemã, relíquia da guerra. Lenora lembrava muito a mãe, extremamente religiosa, capaz de perdoar o pai, mesmo sabendo que ele pudesse ter matado a mãe.
Por causa dos eventos que antecederam a morte da mãe e do pai, Arvin não é religioso, só frequenta a igreja para acompanhar a vó e Lenora Numa dessas eles conhecem o novo pastor, Preston, uma figura extremamente pedante, na primeira oportunidade humilha Emma por sua posição social (de forma sutil, mas assim o faz). Tempos depois ele seduz Lenora, o que provoca o que há de pior em Arvin.
Nessas redondezas vivia um casal que, aparentemente, não tinham nada a ver com a história, Carl e Sandy. Ela trabalhava com Charlotte na lanchonete onde Willard a conheceu, mas não é por aqui que as histórias se cruzam, embora tenha sido no mesmo dia que Carl aparece na vida dela. A partir daí eles se tornam serial killers disfarçados de viajantes, eles davam carona para jovens homens que estivessem na estrada e, na primeira oportunidade, fazem uma parada estratégica, dizendo que farão uma sessão de fotos, mas o modelo (o passageiro) acabava nu e morto. As provas eram as próprias fotos, numa dessas fotos está Roy Laferty que, perdido depois de ter assassinado Helen, entra no carro do casal e morre… Mas isso ninguém sabe.
Além disso, Sandy é irmã de Lee, a quem ele tenta controlar para que continue a parecer um bom xerife e conseguir a reeleição. Para completar, Arvin também pega uma carona com eles, o que resulta em … Esse spoiler eu não darei para vocês!
Eu fiquei muito relutante para assistir esse filme, não é um gênero que eu goste, tem cenas que me fizeram quase desistir de terminar de assistir, mas valeu a pena ter prosseguido. Essas cenas são necessárias para o entendimento geral da trama e dão à produção o status de thriller gore, sem elas a história continuaria boa, mas seria um drama bem pesado.
Na verdade, se formos fazer análises profundas sobre a trajetória de cada personagem, é capaz de encontrarmos aí um drama psicológico, afinal se fala de transtorno pós-traumático (tanto da guerra quanto da perda de ente querido), suicídio, um radicalismo religioso perigoso, pedofilia (o pastor Preston), vingança de variadas formas, assassinato em série, fome de poder. Talvez o ponto principal sejam as relações familiares e a forma de se encarar a fé.
Acredito que já falei isso aqui, mas eu venho de uma família bem religiosa, cresci em colégio católico, mas tenho muitos parentes e amigos protestantes, outros que são estudiosos do espiritismo. Resumindo, a fé me ronda de variadas formas desde que me entendo por gente e tenho minhas crenças, mas sempre fui cética ao fanatismo, qualquer que seja a religião.
Foi de partir o coração ver o Arvin de 09 anos encarando uma cruz sem explicações maiores, apenas porque ele tinha que estar ali senão a mãe morreria, e a culpa seria dele, porque não orou. Também foi triste ver Lenora e Emma encarar a verdade absoluta do pastor Preston, beirando a humilhação. É incrivelmente louco ver Roy pregando e depois achando que tinha o poder da ressurreição.
Aliás, ele protagoniza uma das cenas mais impactantes do filme. No meio da pregação ele diz que tinha medo de aranhas, mas que a fé havia o salvado, então pega um pote cheio de aranhas e joga na cabeça.
Vamos a um elemento que, em um primeiro momento, talvez tenha vendido mais o filme que a história em si (pelo menos para mim foi), o elenco, repleto de nomes muito conhecidos e que merecem reconhecimento. Os nomes deles chamou atenção, elevaram a expectativa, a atuação de qualidade me fez querer continuar a entender a história.
O primeiro nome é, para mim, a peça mais importante, Willard Russel é vivido por Bill Skarsgård, famoso por ser o Pennywise dos novos filmes de “It – A Coisa”, além de fazer parte do clã Skarsgård (já falei do pai, Stellan, e de um dos irmãos, Gustaf). Foi gratificante o assistir sem toda aquela maquiagem, podendo ver todo o poder do olhar dele (que nem precisou ficar vesgo para assustar). É possível ver a mudança de humor de Willard só com o olhar, quando ele estava com Charlotte ele tinha um olhar extremamente doce, de bom moço apaixonado mesmo, mas quando ele entra em desespero o olhar se torna duro, pesado, como quem dizia que carregava o mundo e precisava concertar o que estava errado.
Obs.: Quase não assistia “It – A Coisa”, mas assisti e quero assistir o segundo. Mas seria um sonho assistir esse Skarsgård em um filme mais leve.
Um dos momentos que é possível ver essa mudança é uma cena rápida, com Arvin, sendo esse um momento crucial. Willard mostra toda sua violência ao dar uma surra em algumas desavenças da cidade, o garoto observa tudo de dentro do carro. Quando o pai entra, com as mãos sujas de sangue e respiração ofegante, ele conversa com o filho, passando uma lição de vida, que existiam alguns sujeitos ruins, e Arvin responde perguntando se existem mais de 100. Nesse momento Willard troca o olhar duro, do cara violente, para o olhar quase doce e dar uma risadinha, algo que o aproxima do filho e o acalma.
Para mim, uma das cenas mais lindas do filme inteiro, mas não dura 30s!
Falando de Arvin de 09 anos, ele é vivido por Michael Banks Repeta (lógico que lembrei de “Marry Poppins”, mas não encontrei nenhuma informação dizendo se tem ligação). Ele faz um trabalho impecável, especialmente nessa cena que citei, ele admira o pai naquele momento e aquele se torna o seu dia preferido. Isso explica muito do Arvin de 16 anos.
Esse Arvin é interpretado por Tom Holland, o menino aranha dessa geração de “Vingadores” da Marvel. O que pouca gente não lembra ou não sabe é que, antes de ser esse icônico Homem Aranha, Tom já se destacava na atuação, em filmes que exigiram veia dramática (sem trocadilhos), como, por exemplo, em “O Impossível” e “No Coração do Mar”. Ver esse moço sério, sem sorrisinhos, sem acrobacias, sem efeitos especiais, só com o puro talento dramático dele, incluindo aí o uso de armas, é emocionante.
Voltando para a primeira fase da história, a mãe de Arvin e esposa de Willard, Charlotte, é vivida por Haley Bennet. Ela esteve presente em filmes como “Sete Homens e um Destino”, “A Garota no Train” e “Letra e Música” (nesse ela também canta, inclusive, “Way Back Into Love” está na minha playlist). Emma, a mãe de Willard, é interpretada por Kristin Griffith, dentre outros títulos, ele esteve presente na série “The Deuce”.
Helen Hutton é vivida por Mia Wasikowska, que ficou famosa por ser a Alice em “Alice no País das Maravilhas” (2010) e “Alice por Trás do Espelho”. Roy Laferty, marido e assassino de Helen, é vivido por Harry Melling, que recentemente esteve em “The Old Guard”, mas vocês, queridos Potterheads, vai lembrar dele como Dudley Dursley, o primo chato de Harry Potter (eu assisti a saga na quarentena).
Eu não sabia que ele estaria no elenco e ele foi incrível, incorporou tão bem a loucura de Roy que teve um momento que deu pena dele.
A pareia de Roy, Theodore, é vivido pelo cantor e compositor Pokey LaFarge, que também contribuiu para a trilha sonora do filme com as músicas “Are You Washed In The Blood”, “Stealin Stealin” e “Banks Of The Ohio”.
Passando para o momento de Arvin de 16 anos, Lenora, é interpretada por Eliza Scanlen, famosa pela mini-série “Objetos Cortantes” e por ter vivido Beth March na adaptação de “Adoráveis Mulheres” da diretora Greta Gerwig.
O pastor pedófilo e arrogante Preston é vivido por Robert Pattinson, um dos caras mais subestimados da indústria, só porque era um vampiro que brilhava no sol (Edward Cullen, Saga Crepúsculo). Acontece que esse moço é muito mais que Edward Cullen e ele tem provado isso em produções menores, agora ele pode mostrar para todos todo seu talento. Desde a primeira cena do pastor eu senti asco dele, é algo que não consigo nem explicar sem dar mais spoiler.
À título de curiosidade e registros futuros, eu era #TeamEdwarCullen, apesar dos pesares.
No núcleo mais “afastado” da história, Carl e Sandy são interpretados por Jason Clarck e Riley Keaugh. Ele é conhecido por filmes como “A Hora Mais escura”, “O Grande Gatsby” e “Everest”, ela tem uma larga carreira como modelo, mas também esteve em filmes como “Mad Max: Estrada da Fúria” e “Luck Logan – Roubo em Família”.
Curiosidade, ela é neta de Elvis Presley e Priscilla Presley.
O irmão de Sandy, o deputado Lee Bodecker, é interpretado por quase irreconhecível Sebastian Stan. O Soldado Invernal/Bucky Barnes do universo dos “Vingadores” da Marvel deu espaço para um político corrupto e grosseiro, tudo sob uma aparência estereotipada, gordo e desleixado. A beleza dele passou longe, ficou só o talento, que me fez também ter asco desse personagem.
Um detalhe interessante nos personagens de Sebastian Stan, Robert Pattinson e Tom Holland foi o trabalho corporal e de entonação de voz, não são típicas de nenhuma produção que eles costumam estelar, incluindo aí o sotaque dos EUA, já que nenhum deles é de lá. Robert Pattinson e Tom Holland são ingleses e Sebastian Stan é romeno (e viveu na Áustria maior parte da vida). A questão do sotaque também vale para Bil Skarsgård, sueco, Harry Melling, inglês, e os australianos Eliza Scanlen, Mia Wasikowska e Jason Clarke.
Lembrando que, embora muitos deles já tenha experiência com personagens dos EUA, a história de “O Diabo de Cada Dia” é ambientada no sul do país entre a década de 1960 e 1970. O sotaque de lá é extremamente marcante e, acredito eu, não muito fácil de ser aprendido e passado com a naturalidade com esse elenco “de fora” fez.
Seja pelo elenco, seja pela história, seja pela fama, seja pelos olhos de Willard Russel (me impactaram, ainda não superei), assistam esse filme. Escolham o momento certo, saibam que a história tem mais peso do que as cenas mais tensas, vale a pena.
E não posso terminar essa resenha sem essa sinopse alternativa: o Menino Aranha é filho do Pennywise; quando cresce ele enfrenta o novo Batman e o Soldado Invernal (mais uma vez, porque em “Guerra Civil” eles lutam em lados opostos)!
Até mais.