A Magia das Flores – “O Ano da Graça”
Abrir os olhos para alguns detalhes da vida nos faz mais fortes, é isso que a vida e a história têm feito para as mulheres, usando algumas histórias fictícias com toques reais tão cruéis que se escondem na “normalidade” da rotina.
Mais uma vez a literatura nos traz para essa realidade com a obra “O Ano da Graça”, de Kim Liggett, publicado recentemente no Brasil pela Globo Alt. Antes de mais nada, não é exatamente uma distopia, em momento algum é referenciado um ano específico ou nome de cidade existente, falando apenas dos meses e das estações do ano do hemisfério norte.
Algumas informações antes de começar essa história:
– O ano da graça tem o objetivo de fazer as meninas se livrarem da magia maligna que desenvolve, que amaldiçoa homens e outras mulheres para coisas obscenas;
– As mulheres não têm vez nem voz, sequer escolhem seus penteados. Devem usar sempre tranças arrematadas com fitas, mostrando todo seu rosto. As crianças usam fitas brancas, as meninas que já sangram usam as vermelhas e as casadas usam as pretas;
– Nas margens vivem as mulheres banidas do Condado e seus filhos, os temidos predadores. As mulheres satisfazem os desejos dos homens dos Condado quando as esposas não dão conta;
– As flores servem de linguagem, cada flor tem seu significado;
– Antes de o ano da graça começar as meninas são escolhidas por pretendente, recebendo uma flor e seu precioso véu. Quem não recebe será levada para as oficinas quando voltam do ano da graça, com trabalhos inferiores;
– Poucas sobrevivem ao ano da graça, quem volta sempre tem sequelas, que são devidamente escondidas. Quem não volta e não tem seu corpo encontrado condena as irmãs mais novas para o banimento para as margens;
– Sonhos são permanentemente proibidos, são considerados parte a magia das mulheres;
– Os guardas eram castrados para poder acompanhar as mulheres do ano da graça;
– Tirney James não é como as outras, ela nunca quis ser uma esposa, foi criada com liberdade, investigou os mistérios desse ano e tem dois “aliados”, Michael e Hans (um guarda);
– Ninguém fala do que aconteceu no ano da graça!
Agora podemos contar a história de Tierney. Em seu ano ela não queria ser uma esposa, preferia ir para as lavouras, mas recebe o véu de Michael e, por isso, se sente traída. Ela segue para seu ano da graça com esse sentimento, com uma pesada jaqueta costurada por uma das irmãs mais velhas, June, e algumas frases aparentemente sem sentido da mãe e da tia: a água é mais pura na nascente; fique no mato; seus olhos estão abertos, mas não enxergam, etc.
Neste ano são 32 meninas, entre elas Tierney, Gertie e Kristen. Gertie era considerada impura, mas era de confiança, já Kristen era problema, nunca iria cooperar e conseguia colocar as demais contra Tierney e Gertie. Já no caminho dava para sentir o peso desse ano, especialmente ao ver pela primeira vez o acampamento.
Era um lugar asqueroso, completamente inóspito. Lá dentro tinha a árvore do castigo, lembrando os horrores dos anos anteriores, lá fora tinha floresta, habitada pelos predadores e “fantasmas”. Aparentemente elas estavam seguras, porque acreditava-se na maldição delas, então ninguém invadiria o acampamento. Por isso ninguém entendia como as meninas fugiam dali.
Nos primeiros dias Tierney tentou seguir a razão, construir utensílios para a sobrevivência, mas nada foi fácil. Kristen insistia que ela não queria se livrar da magia e colocou as demais contra ela, em pouco tempo Tierney estava banida do acampamento. Ela sobrevive, mas precisa de ajuda, pensa que pode contar com Hans, o guarda, mas depois ela descobre que a ajuda vem de outro lugar.
Primeira ela descobre uma nascente de rio, lembrando do que mãe falou da água pura, depois ver que a costura da jaqueta de June tem sementes, ajudando em cada estação. Mas ainda não é suficiente, é inverno severo e ela não tem mantimentos, além de sempre tentar ajudar as meninas do acampamento do lado de fora.
Num dessas tentativas ela é atingida por um machado de Kristen e quase morre. Ela é resgata por Ryker, um predador que fez um trato com o pai de Tierney, que é médico e salvou seu amigo, Anders, da “maldição” do acampamento e, por isso, ele se comprometeu de poupar a vida da filha. Ryker cuida dos ferimentos de Tierney até ela se recuperar.
Ao ficar mais íntima de Ryker, Tierney começa a encaixar algumas informações chegando a seguinte conclusão: não existe magia, nem maldição. O que acontece é que a água do poço do acampamento está contaminada de cicuta, fazendo as meninas enlouquecerem, acharem que tem a tal magia (isso e todas as histórias que são contadas para elas). Devido às más condições, a varíola é disseminada, contaminando os predadores que entram em contato com as meninas, por isso a proteção deles é uma grossa manta preta.
Só que isso não impediria de o ano da graça acontecer. Os predadores recebem pelas presas (meninas) que captura, matam e esquartejam, entregando os membros no mercado negro. As pessoas acham que tem magia nessas partes, usando como afrodisíaco e fórmula da juventude. Eles são o sustento das famílias das margens, mesmo se não existisse maldição ou magia eles precisam dessa fonte de renda. Na verdade, seria até pior, porque eles não teriam mais medo e matariam sem pudor.
Tierney conta a descoberta para Ryker, mas não espera que mais alguém estivesse ouvindo!
Ainda assim, Tierney precisa voltar para o acampamento, tentar ajudar as meninas que sobraram, apesar dos pesares. Ela até consegue, mas alguns outros mistérios ainda rondam esse ano, que está prestes a acabar. Ela consegue a ajuda de Gertie, a quem conta sobre Ryker e é encorajada a voltar para ele, a amiga promete a ela que cuidará das irmãs dela.
Ela ainda tenta, mas Ryker é morto na sua frente. Tierney volta do ano da graça com a certeza que aquilo deveria mudar e pronta para enfrentar, só que tem algo mais em jogo, ela estava grávida de Ryker. Quando chega ao Condado choca a todos, espera que Michael não a aceite e a castigue e não conta com a ajuda das meninas.
Michael a aceita, diz que o filho é dele. As meninas do ano da graça confirmam a história de Tierney, as mulheres silenciosamente dão apoio. Tierney descobre a menina dos sonhos na verdade era sua futura filha e que algumas mulheres do Condado estão unidas secretamente, lideradas por sua mãe, lutando silenciosamente para o fim do ano da graça.
A história é extremamente complexa, são camadas e camadas de mistérios envolvidos e um drama muito bem construído. Uma história nada fácil de ser contada, muito menos resumida, mas necessária de ser contada, mesmo com todos as alegorias adotadas.
Confesso que eu esperava um pouco mais do final, algo mais energético de Tierney, imediato, mas entendo o objetivo da união secreta das mulheres do Condado, do simbolismo nas atitudes do pai dela e de Michael e de sua filha com Ryker. Revoluções são necessárias, mas precisam ser pensadas, geridas, era necessário que Tierney sofresse o que sofreu para descobrir o que descobriu, abrindo espaço para que algumas mudanças pudessem ser feitas, gradativamente.
A autora é muito feliz nas linguagens que escolhe para contar a história, os detalhes que coloca, em especial o significado das flores. Nos sonhos de Tierney sempre aparece uma flor vermelha, mas na “vida real” poucas flores são vermelhas, é um tipo raro. Tornou-se símbolo da união das mulheres do Condado, visto na cena da praça, quando finalmente os olhos de Tierney enxerga esses detalhes.
Outro detalhe que me chamou atenção é o caso de Hans. Ele era apaixonado por uma menina do ano da graça bem anterior do de Tierney, ela tinha só 07 anos, mas a menina (Olga) recebeu véu de outro pretendente, Hans acabou se sacrificando para ser guarda. Tierney o conheceu na casa da cura do pai, sofrendo com a dor da castração e sentiu, foi o consolar.
Ela sempre pensou que ele era um amigo dela, porque ele sempre a protegia no Condado, mas foi bem assim. Hans transferiu o sentimento de Olga para Tierney! Olga não voltou de seu ano da graça, ela foi morta por Hans quando ele tentou fugir com ela do acampamento. Ele achou que poderia dar certo com Tierney, foi ele que a ouviu falando para Ryker que não existia maldição e era ele que assombrava o acampamento.
Isso faz reflexão sobre a quebra da confiança, sobre o conceito de segurança, aquele que prometia segurança foi quem mais poderia ter prejudicado. A mãe de Tierney fala no começo “não confie em ninguém, nem em você mesma”, o que fez referência várias vezes, mas não esperava que poderia servir para esse momento também.
Juntando as peças Ryker fala para Thierney que as mulheres das margens sofrem muitos dos guardas, ela não entende a razão, afinal eles são castrados. Daí Ryker fala que isso não os impede de pensar que podem!
Traz alguma lembrança? Castração química, solução de estupros, talvez!!!!
Até mais.