A maior intenção desta produção, é causar questionamento, e é muito efetivo nisso, é em cima destes questionamentos que eu faço o texto abaixo:
De maneira torta e à primeira vista, pela sua simplicidade narrativa, este documentário de Maria Ribeiro pode ser interpretado por um viés muito negativo: o retrato de uma esquerda burguesa que faz um vídeo relatando seus dramas pessoais e consegue com que isto passe num cinema, por conta de seus contatos e influência dentro da comunidade cinematográfica.
Só que pra mim, pelo menos, foi uma narrativa poderosa do pior momento da minha vida até agora.
O documentário relata a semana que antecede as eleições presidenciais de 2018 até a confirmação do vencedor, pelas lentes e narração da própria Maria Ribeiro. Claro que cinematograficamente a despretensiosidade do filme passa longe do aceitável, tendo filmagens de celulares e relatos sinceros sobre não ter conseguido filmar nada de rentável em algumas locações. Mas, ao filmar uma breve cena, da janela de seu apartamento no Rio de Janeiro, com três pessoas comemorando a vitória de Bolsonaro com rojões, extasiados na praia, Maria me pegou na história que queria contar. Me embrulhou o estômago relembrar aquele dia 28 de Outubro de 2018.
E penso eu, que o ponto máximo do cinema é esse. Principalmente se a gente nota que com o decorrer do tempo, analisar os aspectos técnicos de um filme tem sido mais importante do que pensar no que a obra gera de pensamento crítico e qual emoção nos desperta. O sentir algo é de fato o que a gente espera na sala de cinema. E nesse caso, eu senti nojo num primeiro momento que me mostrou transformado ao sair da sala: pela primeira vez não saí com raiva de quase 58 milhões de pessoas ao assistir alguma coisa que trata sobre a eleição deste imbecil. Mesmo que não tenha sido a intenção maior do filme, pela primeira esta defesa me foi compreensível.
Uma fala de Sérgio Vaz enquanto era entrevistado por Maria Ribeiro, foi a que mais me impactou durante o documentário: “Pobre tem pressa para entender”. Claro que já ouvi essa frase de diversas outras maneiras, nessa tentativa de justificar por que a classe-média abraçou a ideia de votar no Bolsonaro, mesmo que a maioria das pessoas, creio eu, não são a favor de 80% das coisas que ele diz. O povo estava ressentido desde 2013, e o candidato que conseguiu simplificar e canalizar esse sentimento mais rápido foi o candidato do PSL.
Manuela d’Ávila completa esse entendimento, falando para a câmera de Maria que uma mulher que trabalha oito horas por dia, fica três horas horas no ônibus, e quando chega em casa ainda tem que cozinhar para os filhos e pro bosta do marido que não mexe um dedo para ajudar em casa, não tem tempo de conferir se o projeto de fazer uma mamadeira com um pinto na ponta é verdade.
A direita se organizou na rede, após a derrota de Aécio em 2014, de maneira muito mais efetiva que a esquerda, e ganhou a eleição ali. Algo que coincide com outra fala aparentemente aleatória, de Manuela d’Ávila, onde ela diz “nem sempre sorte é sorte”, provavelmente se referindo a vitória a duras custas na Reeleição de Dilma e que a candidatura dela com Haddad tenha surtido tanto efeito, tirando o Ciro do segundo turno e consequentemente, entregando a vitória para Bolsonaro.
O insight de que a extrema-direita vem fazendo pelo mundo ser uma revolução, freando todas as promessas do começo do século XXI de ser o século próspero, com menos fronteiras entre os povos, me chocou e me surpreendeu. De fato a extrema-direita conseguiu acabar com a realidade compartilhada. Nós não vivemos mais no mesmo planeta (quase que literalmente para alguns que creem que a Terra é plana), onde pelo menos as bases da realidade sirvam para todas as pessoas. Os valores democráticos e de diversidade que a humanidade vinha, a passos lentos, trabalhando para tornar real desde o fim da 2ª Guerra Mundial, só são valorizados agora neste plano intelectual esquerdista que não compactua com a maior parte da população desesperada, que procuram em discursos duros e intolerantes uma resposta completamente diferente para as mazelas do mundo.
No fim, Maria Ribeiro consegue com esse “vídeo caseiro”, suscitar questões que não teimam em adormecer dentro do peito de quem não entende essa escolha surreal da maioria. Para mim, é isso que traz um tom muito poderoso a sua narrativa. Como crítico, sinto que nem cabe a mim atribuir uma nota a essa obra, pois com certeza será uma experiência muito particular para quem tiver essas questões latentes dentro de si.
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Cena Pós-Crédito
O filme humaniza os eleitores de Bolsonaro, mas não esqueçamos do que representa, em especial para a cultura, a eleição da extrema-direita para a nossa sociedade. Independente de seu posicionamento político, aquele que acredita que o seu diferente deve ser exterminado, não merece o seu apoio.