O preconceito e o racismo são problemas que marcam a história da humanidade. Ser distinguido por sua origem, classe social ou cor da pele, entre outros fatores, é algo muito mais comum do que gostaríamos, não importa a época em questão.
Green Book – O Guia é um filme que aborda o racismo com um contexto histórico fenomenal. No país das oportunidades, os EUA, ser negro em plena auge da segregação racial era algo muito difícil. Culturalmente as pessoas tinham nojo e repulsa dos negros, não importando sua classe social. Por força da lei, alguns aturavam, mas nada era simples para pessoas negras, mesmo uma simples viagem. Com o intuito de evitar que motoristas negros parassem em lugares “inapropriados” (onde seriam recebidos e tratados como lixo), criou-se o Green Book. Este “livro verde” era um guia destinado a evitar confrontos, situações vexatórias e até brigas por parte da população negra.
Tony Lip (Viggo Mortensen) é um segurança de uma boate chamada Copacabana. Lá, com métodos de persuasão discutíveis, ele mantém a calma e a segurança dos clientes. Apesar de bruto, Tony é um homem de família. Sua mulher e seus dois filhos são o tesouro que ele tem.
Para não fugir à regra, o segurança também é racista ao extremo (como verão em uma cena logo no primeiro ato), porém a necessidade o obriga a buscar emprego como motorista do “Doutor” Don Shirley, interpretado com maestria por Mahershala Ali (vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante). Eles são seres antagônicos, diferentes não apenas na cor da pele e no comportamento, já que também são distantes entre si quando o assunto é educação. Tony é extrovertido, faz amizade fácil, quase tão rápido quanto arruma briga. Shirley é de uma introspecção incomum, contido nas palavras, polido e culto ao extremo, ainda que sua história envolva não apenas o racismo sofrido por ser negro, como também o racismo que ele mesmo impõe a outros por conta de seu status elevado, cultura e pompa.
Juntos, eles terão que passar dois longos meses em turnê. Meses onde o conhecimento de suas próprias vidas será ampliado, onde barreiras serão, gradualmente, quebradas. Afinal, tudo poderia ocorrer em uma longa viagem onde um branco – em plena época de racismo e intolerância gritantes – dirige para um negro. Tudo poderia ocorrer… e tudo ocorre.
Green Book se sustenta com as atuações de Viggo e Mahershala. O carisma dos dois é de uma amplitude pouco vista nos tempos atuais. Ainda que haja ambientações e indumentárias condizentes com aquilo que a época pedia, certamente essa trama se sustentaria em um simples palco, cujas luzes estariam focadas nos dois, pois eles são as almas (sem cores específicas) de um filme atemporal, honesto e cru.
Don Shirley é um homem que aprendeu a criar para si mesmo uma couraça, cuja principal função é mantê-lo em um pedestal, afastado dos chacais que o devorariam pura e simplesmente pela cor de sua pele. Tony, por sua vez, é de uma simplicidade que choca, um homem com princípios simples e também arraigado pelo preconceito, mas jamais bruto a ponto de não reconhecer que há uma boa pessoa em Shirley, seja lá qual for sua cor.
Mundos distintos entram em conflito. Como reflexos, Tony e Shirley passam a interiorizar cada vez mais o mundo um do outro. Diferentes? Certamente. Porém jamais isso seria motivo suficiente para que não enxergassem em si mesmos suas limitações e dons. São homens que foram moldados por suas realidades, todavia jamais se condenaram a permanecer engessados em vidas impostas.
Diante de tantas divergências, de mundos diferentes e de realidades diametralmente opostas, eles compreenderam que não há como fugir de preconceitos, racismos e conclusões precipitadas, porém é possível conviver dignamente com isso. Não somos aquilo que nossas peles ou origens indicam. Somos aquilo que nosso comportamento, caráter e honestidade moldaram ao longo dos anos. Mais do que isso, somos aquilo que queremos ser, não importa a opinião de minorias ou maiorias.
Com o decorrer da trama em Green Book, o espectador perceberá que tudo aquilo de ruim apresentado ainda continua a se perpetuar, pois essa é a essência da humanidade. De qualquer modo, seja você um negro do gueto ou um branco da elite, um negro com pós-doutorado ou um branco que vive como vigia noturno. Seja lá quem você for, certamente entenderá que as aparências e as primeiras impressões enganam. Não há cor ou raça quando o assunto é caráter. Não há barreiras para quem deseja amar e compreender aquele que está próximo, pouco importa se ele é negro, branco, azul ou verde. Um homem é medido por seus feitos e sua índole, jamais por algo que ele não tem controle, como a cor da pele ou a etnia.
Uma comprovação do acima dito é que o livro que inspirou o título do filme realmente existiu e ainda é vendido (para quem aprecia história). Claro que não há mais aplicação útil de suas recomendações, porém fica a marca na história de um período onde um homem deveria saber por onde anda, já que a cor de sua pele poderia ser uma sentença de morte. The Negro Motorist Green Book é uma das vergonhas provocadas pela intolerância, preconceito e racismo que não podem ser apagadas e, graças a Green Book, está perpetuada e registrada no cinema.
Com uma trama forte, bem conduzida por Peter Farrelly, escrita por este e pelo filho de Tony, Nick Vallelonga, cuja maior virtude está na simplicidade da história, podemos enxergar melhor os motivos que levaram a Academia a premiar este longa-metragem como o Melhor Filme na última edição do Oscar.
Green Book ainda tem muitos inimigos declarados, pessoas que querem mudar a trama, mas que se esqueceram de que esta é uma obra “baseada” em fatos reais. Não assisti um documentário ou li uma biografia. Vi uma adaptação de histórias compiladas que ganharam um tom mais leve e humano para dar credibilidade aos espectadores. O filme é corajoso por mostrar que nós, seres humanos, somos falhos, preconceituosos e – sobretudo – moldamos nosso comportamento de acordo com as aparências. Tony era um racista por ter sido criado em uma cultura onde isso era normal. Don Shirley era soberbo por saber que muitos se aproximariam dele para obter favores, fama ou apenas o maldito dinheiro que desde tempos imemoriais tem sido posto acima de valores morais e éticos.
Tony e Don foram pessoas como nós. O diferencial está no fato de que eles optaram por conhecer mais antes de condenar. Eles não apagaram de uma hora para outra os vícios, a malícia ou o pré-julgamento. Não. O que eles fizeram foi conceder o benefício da dúvida para, então, minimizar uma barreira que a dor, a raiva, o preconceito e o tempo foram moldando entre eles. Juntos, eles se tornaram pessoas melhores.
Com um elenco excelente, atuações ótimas e tecnicamente muito bem elaborado, Green Book teve a coragem de novamente falar sobre os erros que todos nós estamos sujeitos a cometer. Talvez esse tenha sido seu maior trunfo.