A Mula
Ir ao cinema ver um novo filme do Clint Eastwood, para mim, é como sentar com fome e ver um belo filé servido à mesa (desculpem-me os vegetarianos, veganos e afins, mas enfim, gosto é gosto). Eu sei que será, ao menos, bom. Geralmente é muito bom. Às vezes, sublime.
Há um ingrediente especial em A Mula, assim como havia em Gran Turino e em Curvas da Vida: Clint atua e diz que será a última vez. Grand Torino seria a saída de cena perfeita, com o final apoteótico e inesperado de Kowalski, que se sacrifica para salvar Thao. Mesmo assim, ele volta ótimo em Curvas da Vida, como o olheiro-quase-cego Gus Lobel. E, de novo, em A Mula, encarnando Earl Stone.
O mais surpreendente de A Mula seja que é baseado na história real de Leo Earl Sharp. Veterano da segunda guerra mundial, ganhou a estrela de bronze por bravura em combate. Era, também, um especialista reconhecido mundialmente nas plantas Hemerocallis. E foi uma mula, que ganhou notoriedade no submundo por mover quantidades incríveis de droga em sua caminhonete Lincoln, por mais de dez anos. A história de Leo Sharp tornou-se conhecida em um artigo do The New York Times Magazine, escrito por Sam Dolnick, no ano de 2014. Se você não consegue fugir ao desejo masoquista de ter spoilers, pode ler o artigo neste link (https://www.nytimes.com/2014/06/15/magazine/the-sinaloa-cartels-90-year-old-drug-mule.html). Faça-o por sua conta e risco.
No filme, Earl ganha uma dimensão humana, ao se ver sozinho na velhice, depois de ter negligenciado por anos a família em prol dos seus negócios. Negócios que, com a crescente venda de flores pela internet, foram à falência. É assim, sozinho, carregando a culpa por não ajudar a família e sem dinheiro, que é abordado para transportar a droga. Afinal, quem suspeitaria que o velho simpático é uma mula? Esta construção da justificativa para o envolvimento de Earl com o crime lembra a de Walter White, na primeira temporada da série Breaking Bad.
Earl é um personagem cativante e foge do estereótipo do octogenário no ocaso da sua vida. Ele consegue equilibrar-se de forma convincente entre o desejo de aproveitar o tempo que lhe resta e a reflexão sobre os erros que cometeu. Ou seja, Clint concede humanidade ao seu personagem. Os melhores momentos do filme são as frases cortantes e sagazes de Earl, muitas delas sobre o modo de vida da sociedade moderna. É como se alguém saísse diretamente dos anos cinquenta e se materializasse em nosso meio. Em vários momentos igualmente divertidos, Clint brinca com a sua própria fama de pertencer à extrema direita (é um membro fiel do Partido Republicano e apoiador de Trump).
O filme é recheado de bons atores, como Bradley Cooper, que Clint já havia dirigido no sucesso Sniper Americano. Ele encarna o agente especial do FBI Colin Bates, que caça o cartel das drogas comandado por Laton, interpretado por Andy García, para quem a droga é transportada. A ex-mulher de Earl, Mary, é vivida pela excelente Dianne Wiest. Ainda participam do elenco Alison Eastwood, Taissa Farmiga, Michael Peña e Ignácio Serricchio.
A história inicia como um drama e, aos poucos, transforma-se em um thriller policial. A fotografia é conservadora, assim como a forma narrativa. Não há ousadias ou exageros e a eficiência predomina. Clint, um jazzófilo, sempre tem um cuidado especial com a trilha sonora e desta vez não foi diferente. O cubano Arturo Sandoval foi o encarregado de musicar o filme e o fez com excelência.
Voltando ao início do texto, A Mula é um filme cozido no ponto certo, por um produtor/diretor/ator que domina a arte de fazer cinema e que continua trabalhando (para nosso prazer), pois essa arte confunde-se com a sua própria razão de existir.
Que venha o próximo.
A MULA
(THE MULE)
ESTADOS UNIDOS , 2018 , 116 MIN.