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CRÔNICAS REFLEXÕES

A morte do Pequeno Príncipe.

A morte do Pequeno Príncipe.
  • Publicado em: dezembro 26, 2018

Textos longos são difíceis de ler pela internet. Alguns não apresentam conteúdo, outros até apresentam algo, mas não estão elaborados com a atenção que o leitor merece. Pensando nisso, estou postando este artigo publicado aproximadamente em 1974 *. O texto é um relato claro e muito bem escrito sobre o autor de O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry, e suas aventuras e obstáculos até a morte em plena Segunda Guerra Mundial. 

Leiam, pois temos muita coisa espalhada por aí, porém poucos trabalhos mostram respeito pela vida de Saint-Exupéry e também por vocês, leitores e fãs. Garanto que, ao final da leitura, irão ter uma visão melhor de Antoine, além de compreender um pouco mais de suas obras e sua vida. 

Não tenham medo de se aventurar. Eu não tive.

Digitei tudo com muita paciência e atenção. Não exclui uma única sílaba ou alterei o que quer que fosse. Vocês lerão o material da época, como foi escrito. Espero que gostem.

Boa leitura!

Franz Lima.

Saint-Exupéry era um homem angustiado, que vivia procurando se entender com outros seres humanos. Muitas vezes incompreendido pessoalmente, ele teve, entretanto, seu trabalho sempre entendido e admirado. Autor de livros famosos e premiados como O Pequeno Príncipe, Correio Sul, Vôo Noturno, Terra dos Homens, Piloto de Guerra e outros, Saint-Ex era, acima de tudo, um piloto. Tinha verdadeira obsessão por voar. Tanto que, uma vez, proibido de voar, não conseguiu mais escrever.  E quase morreu de tédio e de fome, em Paris. Mesmo odiando a guerra, quis participar dela em vôos de reconhecimento. “Eu lutarei contra qualquer um que pretenda subtrair a um indivíduo, ou a um grupo de indivíduos, a liberdade do homem” – escreveu então. E lutou até a morte. Morreu voando, como gostava de viver.

Um dia de outono de 1926. O jovem Antoine de Saint-Exupéry se apresenta no aeródromo de Montaudran, perto de Toulouse, ao diretor de exploração das linhas Latécoère que, com meios precários e tenacidade furiosa, abre no céu as primeiras rotas da aviação comercial.

Esse diretor é Didier Daurat, chefe temível e temido, que impõe a todos implacável disciplina.

Saint-Exupéry diz:

– Senhor, eu gostaria de voar.

Daurat responde:

– O senhor fará como todos os outros, seguirá fila.

Seguir a fila, em Montaudran, significava vestir o macacão azul de mecânico, trabalhar no hangar, desmontar motores, limpar cilindros, escovar velas e mergulhar as mãos em óleo queimado.

Saint-Exupéry, menos preparado que qualquer outro para essa rude existência, aceita tudo. Muito mais como uma espécie de alegria interior. Em todo caso, ele se tornou, como escreveria em Terra dos Homens, o “companheiro” que se misturava à equipe anônima, para todos apenas Saint-Ex.

“A grandeza de uma profissão – acrescentaria ele – talvez esteja antes de mais nada no fato de unir os homens.” Se esta profissão for dura, perigosa, forjará ligações mais estreitas, mais sólidas. Saint-Exupéry levava o correio voando sobre a Espanha onde enfrentava terríveis tempestades, depois sobre o deserto, no meio do calor tórrido ou no meio do vento de areia. Isto depois de ser sacramentado “piloto de linha”, título que mais ambicionava. Ele compartilhava – a partir de então – a vida destes pioneiros do céu, voando fosse qual fosse o tempo, em aviões frágeis, sujeitos a panes súbitas e freqüentes.

                         Correio do Sul foi escrito em pleno deserto

Um dia Saint-Exupéry foi enviado a Cap Juby, um posto perdido em pleno deserto africano. E viveu lá, num barracão, em companhia de três mecânicos, um macaco e um camaleão “mergulhado em reflexões intermináveis”. Sentado sobre sua cama de campo,  entre um vôo e outro, ou à noite enquanto os mecânicos dormiam ele escrevia um romance: Correio do Sul, seu primeiro livro. Pode-se dizer, com certeza, que Saint-Exupéry encontrou seu caminho graças ao avião e ao deserto.

Depois de ter passado dois anos em Juby, ele foi nomeado diretor do Correio Aéreo Argentino, filial na América do Sul da Société Française, e se estabeleceu em Buenos Aires.

Alguns capítulos de Terra dos Homens – um de seus mais famosos romances – têm datas do tempo em que o escritor e piloto estava na América do Sul. São o fruto das longas meditações sobre os homens dos quais se afastou, sobre os companheiros que ele reencontra em cada escala, e sobre a profissão. Profissão de piloto ou jardineiro, “porque além da ferramenta e através dela, é a velha natureza que reencontramos, a do jardineiro, do navegador, do poeta”. Será sobrevoando a terra dos homens que nascerão e se formarão os temas que o escritor desenvolverá nos seus depois tão elogiados livros.

Na América do Sul, Saint-Exupéry voa especialmente de noite. Vôo Noturno nasce ali.

Saint-Exupéry mistura a meditação à ação e desdobra seus temas numa linguagem rara, inscrevendo-os sobre uma pano de fundo, ao mesmo tempo rude e maravilhoso. O ano em que foi editado Vôo Noturno, 1931, foi crucial para o piloto. Trouxe glória ao escritor e fixou, para o homem, a era dos anos dolorosos que somente terminaria com a sua vida.

A Aero Postale – ou Companhia do Correio Aéreo – passava por sérias dificuldades financeiras agravadas por sórdidas rivalidades políticas. Beppo de Massimi, diretor-geral, foi colocado na situação de se demitir. Didier Daurat, a quem o sucesso assim como sua dureza tinha legado inimizades irredutíveis, foi mandado embora.

Após o sucesso de Vôo Noturno, Saint-Exupéry pediu uma licença para se dedicar inteiramente à literatura. Era o que tinha decidido. Mas ele logo se convenceria de que uma atividade era irremediavelmente ligada à outra, que o escritor não podia abrir mão do aviador.

Somente escrever não lhe satisfazia. O avião era o instrumento ideal, já que lhe permitia carregar o correio, através do qual os homens separados por grandes distâncias, estreitavam “laços”.

AS DÍVIDAS SE ACUMULAVAM…

Os substanciosos direitos autorais que tinham sido trazidos pelo sucesso de Vôo Noturno se derreteram entre os dedos de Saint-Exupéry. Nada mais restava ao antigo diretor da Aero Postale Argentina, tanto mais que ele estava sendo ajudado agora nas prodigalidades e esbanjamento por Consuelo, sua jovem mulher, que ele conhecera em Buenos Aires e que era ao mesmo tempo bonita, inteligente, extravagante e tirânica. Privado de seu avião, Saint-Exupéry não escrevia mais. Entretanto a inatividade está lhe pesando. Ele pediu sua reintegração na Air France, que, após a liquidação da Aero Postale, absorvera esta empresa. A Air France recusa-se a reassumir o piloto Saint-Exupéry, porém aceita destiná-lo ao serviço de propaganda. Ele fica neste emprego o tempo necessário para fazer uma viagem à Indochina e uma série de conferências nas grandes cidades do mediterrâneo.

Saint-Exupéry vive em Paris, com um ser desamparado. Perdeu o interesse por tudo e tem apenas 35 anos.

De 1931, quando foi editado Vôo Noturno, até 1939, quando surge Terra dos Homens, ele não escreve mais nada. Entretanto, é preciso viver e o escritor não sabe limitar-se. As dívidas vão se acumulando, acontecendo até de ter cortados telefone, gás e eletricidade, por falta de pagamento.

Sim, é necessário viver, mas isso deve ser uma espécie de plenitude: ganhar a vida, voar, escrever. É o período das grandes expedições aéreas. A aviação avançou consideravelmente nos últimos anos.

Alguns pilotos, em sua maioria solitários, tentam em longos percursos bater recordes de velocidade. Um francês, André Japy, numa corrida rumo a Tóquio tinha estabelecido a ligação Paris-Saigon em 87 horas. Um prêmio de 150 mil francos (aproximadamente 400 mil cruzeiros de hoje), estava sendo oferecido a quem batesse esse recorde. Saint-Exupéry pensa que com um Simoun, avião rápido, com hélice a passo variável, seria possível melhorar sensivelmente essa performance. A expedição foi preparada em condições deploráveis, e acabou na noite de 29 de dezembro de 1935, no deserto da Líbia.

Em janeiro de 1938, ele tenta estabelecer a ligação por ar entre Nova York e a Terra do Fogo.

A 15 de fevereiro, em companhia de uma piloto chamado Prévot, Saint-Exupéry decola de Nova York. Eles não iriam muito longe. No dia seguinte, a expedição termina lamentavelmente na Guatemala.

Os dois aviadores não morrem por milagre. Saint-Exupéry fica gravemente ferido. Depois disso, torna-se jornalista. Esta atividade não lhe convém, por contrariar sua imperiosa necessidade de independência. Mas através de reportagens a respeito de acontecimentos onde o lado humano desempenha o papel principal, o escritor restabelece ligação com grandes temas que lhe são caros. Em seus artigos reencontram-se a mesma riqueza de descrição, a mesma emoção comunicativa de seus livros. O desfile de 1º de Maio de 1935 em Moscou, de um povo inteiro rumo à praça Vermelha onde Stalin espera, inspira-lhe uma página calorosa, publicada no Paris Soir. Suas reportagens sobre a guerra da Espanha, para o Intransigeant (agosto de 1936) e para o Paris Soir (junho de 1937) são ainda mais comoventes. Afinal é isso mesmo que representa seu pensamento. Ele é contra qualquer ditadura, qualquer autocracia, sejam elas de onde forem.

Mas que ninguém se engane, ele não adere à linhas políticas. Certos homens “viviam de sentimentos e no plano dos sentimentos – escreve ele – eu nada tinha a objetivar nem aos comunistas, nem a Mermoz (nesta época Mermoz militava no movimento Cruz de Fogo), nem a ninguém no mundo que aceitasse dar sua própria pele, e julgasse ser preferível a  todas as coisas o pão dividido entre companheiros”.

Em maio de 1939, às vésperas de uma guerra que iria durar seis anos e cobriria de sangue o mundo inteiro, a Academia Francesa de Letras laureia Terra dos Homens que tinha sido publicado três meses antes. Quando Saint-Exupéry fez a última revisão em Terra dos Homens, estava voltando da Alemanha. Ele tinha visto, ao lado de uma França despreocupada e dividida – onde se cultivava a lenda de uma Alemanha em decadência, povoada por escravos subalimentados -, uma Alemanha dinâmica, fanatizada por uma propaganda perigosa. Voltou de lá inquieto e sem ilusões a respeito do futuro. Saint-Exupéry, que odiava a guerra, queria, no entanto, participar dela. E, apesar de um relatório médico que o declara “não apto para missões de guerra”, ele usou suas mais influentes relações para ser convocado para uma esquadrilha de combate. Consegue, afinal. E, num dia de outono de 1939, ele chega a Orconte, em Champagne, França, no grupo 2/33 de reconhecimento, isto é, no setor mais perigoso da aviação militar.

A vida na esquadrilha significa para Saint-Exupéry – além do ato de voar e todos os seus riscos – o reencontro com os companheiros. Encontramos um Saint-Exupéry muitas vezes alegre e cantando na hora do rancho. E também, em certos momentos, solitário e meditativo.

Ele, tão afastado de qualquer religião (sempre porém envolvido por um certo misticismo), participaria da guerra, “por amor e por religiosidade interior”. Mas infelizmente compreenderia bem cedo a inutilidade do sacrifício que se exigia de seus camaradas e dele mesmo. Em 10 de maio de 1940, Hitler lança a ofensiva. E, nem por terra, nem nos céus, a França tinha como se defender. Nada, para evitar uma derrota, da qual Saint-Exupéry conhecia as causas. Ele sofria por causa da desordem, da impotência, das mortes inúteis. Mas todos os dias, junto com seus companheiros, continuava arriscando a vida, mesmo sabendo que tudo aquilo era insensato e vão. Depois da derrota francesa, os vôos são suspensos e o sofrimento toma conta dele mais uma vez. Saint-Exupéry resolve então ir aos Estados Unidos, onde tem relações, alguns amigos, um editor. E, após dois meses passados em Agay, na casa de sua irmã Gabriele ele abandona a família, sua velha mãe – que mais teria necessidade dele, neste trágico momento – e parte para os Estados Unidos. Lá fica profundamente decepcionado com a opinião que os norte-americanos têm da França

INCOMPREENDIDO PELOS FRANCESES

A derrota francesa, tão rapidamente consumada, deixou-os estupefatos. Eles não têm a menor indulgência com os franceses em geral. “Com que direito eles fazem isso?” – pergunta Saint-Exupéry em nome de todos aqueles que lutaram. E deseja loucamente mostrar aos norte-americanos o que foi a luta, o que foram as “missões sacrificadas”. 

Saint-Exupéry escreve então Piloto de Guerra, que foi publicado nos Estados Unidos em fevereiro de 1942, sob o título de Flight to Arras. Este livro teria naquele país uma ressonância considerável. Influenciaria fortemente a opinião pública num país onde o sentimento público pesa sobre as decisões do Governo.

Entretanto, se Saint-Exupéry pode se orgulhar de ter marcado um ponto apreciável entre todos, ele seria, por outro lado, vítima dos ataques dissimulados dos seus compatriotas refugiados nos Estados Unidos. Eles esquecerão tudo o que há de grandeza em Piloto de Guerra.

Na verdade, isto se devia ao fato de Saint-Exupéry ter-se recusado a segui-los em seus desígnios políticos. Ele se recusou a aderir ao gaulismo que não tinha o mesmo sentido para os refugiados do que para aqueles que continuavam a lutar.

E isto jamais lhe seria perdoado.

O piloto então se tornou amargo, triste e facilmente irritável. Estava sofrendo agudamente. E, apesar dos amigos, se sentindo muito sozinho. Seu desconhecimento de inglês, que ele nunca quis aprender, impede-o de ter relações interessantes, interlocutores à altura. O exílio começa a pesar. Saint-Exupéry sabia que sua terra estava debaixo da opressão e da miséria; e a angústia daqueles que estão “fechados” na noite alemã o atormentava. Ele sente vergonha de ter partido.

Saint-Exupéry trabalha em sua casa – um pequeno apartamento no 21º andar – ou então num pequeno restaurante onde várias vezes ele passa parte da noite. Em menos de dois anos ele escreve: Piloto de Guerra, Carta a um Refém, O Pequeno Príncipe e várias páginas da Cidadela.

“Essencial é viver para o retorno” – escrevia Saint-Exupéry em sua Carta a um Refém. E pensava no dia em que os Estados Unidos colocariam seu poderio a serviço daqueles que estavam lutando contra o nazismo.

Mas, para ele, não poderia ser um simples retorno de viajante nem sequer o retorno ardorosamente desejado do exílio. Ele não poderia falhar com a grande missão que se tinha atribuído desde o desembarque norte-americano na África do Norte, em 6 de novembro de 1942: reengajar-se numa esquadrilha de combate. Saint-Exupéry encontraria, desta vez, dificuldades ainda mais árduas do que aquelas que ele teve de vencer em 1939. O avião de guerra confiado pelos Estados Unidos aos franceses é um P-38 Lightning, que atinge 700 km/h.

Os norte-americanos tinham estabelecido uma idade limite para o piloto de avião em 35 anos. Saint-Exupéry já tinha 43.

Mas, apesar de tudo, ele conseguiu. E, desde os primeiros vôos no Lightning, ficou maravilhado: “já pilotei uma máquina de corrida” – escreveu com o entusiasmo de um garoto possuidor de um brinquedo maravilhoso.

Ei-lo, a partir daí, novamente engajado na ação que libera, e que lhe daria, junto com o direito de ser, o direito de falar. Ele reencontrava, em sua plenitude, sua vocação maior. Ela pesava sobre ele como uma força e o obrigava a entregar-se completamente. Já conhecemos bem esta vocação. Depois de aparecer em Montaudran, ela não parou de se reafirmar no céu do correio, no deserto, nos céus de batalha. Ela provocava o gesto animal de matar, alimentava a linguagem, alentava o poeta. Ela era devotada inteiramente ao serviço dos homens.

Saint-Exupéry alcança o território de La Marsa, perto de Tunis, donde alça vôo para sua primeira missão sobre a França invadida. Esta missão lhe permite sobrevoar a Provença, onde vive à sua espera sua velha mãe, e ele volta meio feliz, meio melancólico. Mas retomou efetivamente seu lugar de piloto de guerra.

Trouxe informações preciosas e, como escreveria mais tarde, reviu “a França ao mesmo tempo tão próxima e tão longínqua… como se estivéssemos dela separados há séculos.”

De volta da sua segunda missão, fez uma má aterrissagem, e seu aparelho foi danificado. Este pequeno acidente serviu de pretexto aos norte-americanos para proibir Saint-Exupéry de pilotar o Lightning, para o qual tinha sido excepcionalmente autorizado. Esta decisão, e sobretudo suas conseqüências, foram para Saint-Exupéry um golpe terrível. Depois de ter tentado tudo em vão, para que ela fosse reconsiderada, ele deixou La Marsa e partiu para Argel. Lá, instalado junto ao dr. Pelissier, “num quarto idiota” e, segundo ele, levando uma “vida de cela sem religião”, ele chegará pela primeira vez, sem dúvida, ao mais profundo desespero.

Já não voa. Considera-se separado para sempre dos companheiros que, no céu, vão participar da vitória que já se pronuncia. Quando, depois de oito meses desta vida deprimente, Saint-Exupéry, graças ao general Chassin, retomou seus vôos, suas missões de guerra, escreveu a um amigo: “enquanto estou passeando, na França eu continuo sendo caluniado…”

Na véspera de sua morte, numa carta endereçada a Pierre Dalloz, falando sobre a pane de um de seus motores a 10 mil metros sobre Annecy, ele ironizaria tristemente: “Enquanto eu estava navegando sobre os Alpes, à velocidade de tartaruga e à mercê de todos os caças alemães, brincava suavemente, pensando nos superpatriotas que proibiam meus livros na África do Norte. É cômico”.

Na primavera de 1944, depois de muitas cartas e encontros, Saint-Exupéry foi novamente designado para o grupo 2/33, onde encontrou alguns sobreviventes dos mortíferos combates de 1940 e o Lightning com que retomou seus vôos sobre a França ocupada. Reencontrou também sua alegria. Na hora do “rancho”, como nos velhos tempos, ele ria, bebia, cantava e parecia ser feliz. Porém essa alegria era apenas superficial.

A INDIFERENÇA DIANTE DA MORTE

Suas últimas cartas nos trazem pensamentos que os que estavam perto dele ignoravam. Ele escreveu a uma amiga, na véspera da sua morte: “Vou concluir rapidamente esta carta. Um companheiro está para decolar daqui a alguns momentos. É a única chance de te alcançar. A minha profissão é difícil. Em quatro ocasiões escapei por pouco. E isto me é vertiginosamente indiferente”.

O grupo 2/33 estava instalado na Córsega, no território de Borgo, ao sul de Bastia. O verão foi quente. O sol queimava os rochedos perto do mar. As agulhas secas, caídas dos pinheiros, estalam debaixo dos pés. A noite trazia com a sombra o frescor e a calma. Os aviões repousavam como se fossem grandes pássaros adormecidos. As cigarras se calavam. A brisa cantava docemente entre os pinheiros e os eucaliptos. Estávamos em 30 de julho de 1944. Saint-Exupéry, sozinho no seu quarto, preparava a missão para o dia seguinte. Será sua nona missão. Ele tinha, então, ultrapassado largamente os cinco vôos que lhe tinham sido permitidos pelo general Eaker. Ele andou mendigando outros e ninguém teve coragem de recusá-los.

– Tenho necessidade – diz Saint-Exupéry. Necessidade de voar, certamente, mas também necessidade de escapar de um mundo onde sofria demais. Arriscar no céu esta vida que parece não conter mais nada… Arrancar-se dos seus próprios despojos, abandoná-los para sempre, já que ele pensa com freqüência na morte e muitas vezes a deseja. Entretanto, os que velam por ele querem evitá-la a todo preço. Um regulamento formal exigia que todo piloto que estivesse a par dos segredos de desembarque não podia mais voar. Porque ele, se fosse feito prisioneiro e torturado poderia informar o inimigo sobre a iminência da operação. Foi, portanto, decidido que o comandante Saint-Exupéry seria posto a par, a 1º de agosto, do segredo do desembarque nas costas da Provença.

Na manhã de 31 de julho Saint-Exupéry decolou para sua última missão. Em torno estavam o mar, a costa, os cumes nevados dos Alpes. Sobre o lago de Annecy, minúsculo quando visto de 30 mil pés de altitude, Saint-Exupéry virou e começou a fotografar. A ordem determinava “missão a leste de Lion”. Lion ficava lá embaixo, à direita. É a cidade natal de Saint-Exupéry, que ele deixou bem jovem. Mais perto, perto da massa sombria das florestas, estava invisível sua velha casa que encerra as lembranças de uma infância feliz.

Um olhar para essas coisas longínquas, um suspiro que enche o coração; a missão estava terminada.

O piloto pára a máquina fotográfica e toma o rumo de volta. Era necessário, mais vez abandonar o céu, lançar um último olhar para estas cidades, estas aldeias onde homens, mulheres e crianças esperavam sua libertação.

Novamente, na frente do piloto, aparecia o mar, cintilando sob o ardente sol do meio-dia. O horizonte vibrava impreciso, mergulhado na luz relampejante, enquanto que na vertical se destacava nitidamente a costa da Provença.

Ao pé daquelas rochas vermelhas enfeitadas pela ressaca, estava escondida Agay, onde Antoine vivera junto de sua irmã Gabrielle, horas calmas e deliciosas. Muitas páginas da Cidadela tinham sido escritas lá. Lá, também, Saint-Exupéry casara-se com Consuelo.

Nesta terra de Provença, que o avião já ia deixando atrás, uma velha mãe esperava seu filho. O canto dos motores que vêm, de tão alto, até ela, estaria levando uma mensagem?

Saint-Exupéry reduziu seus motores. O avião começou a descer. Em poucos instantes, ele pousaria na terra dos homens; do comandante, que o espera sempre com uma ponta  de inquietação, por causa de seu desespero para com os aviões de caça inimigos; dos companheiros, que temem por sua distração lendária que mais de uma vez quase lhe custara a vida.

Saint-Exupéry meditava e sonhava, como gostava de fazer; abandonava-se ao encantamento da descida. Mergulhado em suas meditações, deslumbrado pelo sol que brilha bem em frente, o piloto deixou de ver o caçador inimigo que bordeja, se coloca à sua frente e que não se revelará a não ser através do terrível rastro luminoso das balas? Quais seriam os pensamentos de Saint-Exupéry neste último minuto, em que a morte chega?

O autor de Terra dos Homens via, na morte, mais do que o fim da vida, uma conseqüência da vida. E escreveu: “o que dá um sentido à vida, dá um sentido à morte”. Ele via, ao mesmo tempo, um prolongamento: “cada existência estala em torno de si como se fosse uma vagem seca e liberta seus grãos”. Isto apareceu em Cidadela.

Mas em  Correio do Sul, ele escrevera, muitos anos antes: “O homem não se suprime quando morre: ele se confunde. Ele não se perde: reencontra-se. E a morte se torna troca suprema, último dom de uma vida cumprida a uma vida que continua”.

* Esta matéria foi publicada originalmente na revista “Grandes Acontecimentos da História”, nº 22, da Editora Três, na década de 1970 e está transcrita na íntegra. A ortografia não foi adaptada às novas normas. A publicação foi registrada, na época, no Registro de Censura Federal sob o nº 405. P. 209/73 e é de autoria de Marcel Migeo.

Written By
Franz Lima

Escritor de contos de terror e thrillers psicológicos, desenhista e leitor ávido por livros e quadrinhos. Escrever é um constante ato de aprendizado. Escrevo também no www.apogeudoabismo.blogspot.com

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