O cinema nacional sempre prestigiou seu público com produções cada vez melhores. Já obtivemos produções maravilhosas nos gêneros do terror, comédia, drama, aventura, suspense e ação. São muitas obras de alto nível que servem para destacar essa evolução do cinema nacional. Entretanto, há muito aguardamos por uma adaptação cinematográfica cujo tema fosse o universo dos “super-heróis”. A expressão ficou entre aspas por causa de um detalhe muito comum nas HQ: nem todo herói é necessariamente um bom samaritano.
Assim, finalmente chegamos ao ponto alto de nossa produção voltada para trazer para a Sétima Arte algo que seja oriundo da Nona Arte. Nesse caso, estamos falando de O Doutrinador, filme adaptado da obra homônima escrita e ilustrada por Luciano Cunha, cuja direção ficou a cargo de Gustavo Bonafé e contou com a boa interpretação de Kiko Pissolato como Miguel… ou O Dotrinador.
Inspirado em personagens dos quadrinhos que atuam como vigilantes (Batman, Rorschach, Justiceiro, Demolidor), Luciano Cunha também se valeu da atual realidade brasileira onde a violência predomina e, infelizmente, a impunidade também. Diante de um quadro hiperviolento, onde a esperança é quase nula, um homem decide agir para punir os que massacram a população brasileira.
A trama difere um pouco dos quadrinhos de onde se originou, principalmente na origem do personagem principal. Isso, claro, não atrapalha o desenvolvimento da história e dos personagens. Aliás, a versão cinematográfica dá um suporte maior ao Doutrinador, já que o mesmo faz parte de uma polícia que investiga os próprios crimes dele. Inserido entre aqueles que o perseguem, ele consegue estar sempre um passo à frente.
Acerca das adaptações dos quadrinhos.
Adaptar uma HQ é algo comum em Hollywood, mas ainda pouco comum no cinema brasileiro. Recentemente tivemos as versões cinematográficas de Motorrad, Tungstênio e, finalmente, O Doutrinador. Também ouve versões de O Menino Maluquinho, do Ziraldo, e Ed Mort, obra feita com base nas HQ de Luis Fernando Veríssimo e Miguel Paiva. Nos idos anos de 1973 ocorreu o lançamento de O Judoka, obra inspirada nos quadrinhos homônimos criados por Pedro Anísio e Eduardo Baron, publicados pela extinta EBAL. Em 2019 teremos a aguardada versão live action da Turma da Mônica em “Laços”.
E por falar em adaptação…
A versão cinematográfica é uma adaptação, porém isso não impede que haja elementos das HQ no filme. Um confronto entre manifestantes, o Doutrinador e a Polícia. Os políticos que reconhecemos. O jeito rápido de eliminar os corruptos. Tudo oriundo dos quadrinhos…
Mais do que qualquer item acima citado, o Doutrinador dos quadrinhos e do cinema têm um ponto vital em comum: a luta por um Brasil melhor. Caso você ache isso errado, já que ele se vale da violência extrema, não vou discordar, mas é fato que o medo imposto e o sumiço de figurões do esquema corrupto no país não seriam de todo mal.
Diferentemente dos quadrinhos, o Doutrinador é mostrado desde o início da trama, isto é, ele tem sua identidade revelada cedo e nós nos aprofundamos nas motivações dele. Na graphic novel, por sua vez, quem é o vigilante e suas motivações por trás dos atos são esclarecidos apenas ao final da história.
A primeira HQ também tem um final similar ao do filme, guardadas as devidas proporções.
Espírito da Vingança.
Em função de suas várias influências, incluindo o letal V (de V de Vingança), podemos realmente enxergar essas várias referências durante toda a trama. No filme, o visual remete muito ao caos que vimos em Watchmen e V de Vingança, mas é muito fácil identificar pontos presentes em Batman: o Cavaleiro das Trevas, O Justiceiro e outros do gênero. Nos quadrinhos, inclusive, há uma passagem onde a silhueta do Doutrinador é mostrada e lembra, muito, a de V por ocasião da fuga do campo de concentração.
Quanto à origem propriamente dita de Miguel, identifiquei diferenças entre o cinema e as HQ, mas isso é fruto de uma adaptação para a linguagem da telona. Outro ponto pertinente é a motivação dos personagens na duas mídias: eles têm a tragédia como ponto de partida para o ódio ao Sistema, tal como ocorreu com Frank Castle que o transformou no Justiceiro.
Em suma, a busca inicial pela vingança acaba por se transformar em uma senda justiceira, onde um único homem tenta acabar com todos os homens e mulheres responsáveis pela caos e corrupção que tomaram conta do Brasil. Há uma transição da motivação pessoal para o puramente voltado a uma justiça meio distorcida, mas que muitos de nós certamente já pedimos para que alguém fizesse.
Dedicação do elenco.
As atuações de Kiko Pissolato como o Doutrinador ficaram ótimas. Ele literalmente mergulha na personagem e dá vida ao vigilante mascarado. Apesar de já ter sofrido fraturas nas duas pernas, o ator não se privou de fazer a maior parte das cenas de ação e luta, o que mostra o nível de dedicação dele para se tornar o anti-herói.
Por sua vez, a atriz Tainá Medina nos traz uma hacker que se recusa a ingressar nesse universo caótico, porém o tempo mostra o que há de certo nas atitudes de Miguel. Como Nina, Tainá chega próxima àquilo que a Oráculo é para o Batman e os demais vigilantes de Gotham.
Outros destaques estão nas participações de Marília Gabriela como ministra do STF Marta Regina, Eduardo Moscovis no papel do governador Sandro Corrêa, Samuel de Assis que interpreta o melhor amigo de Miguel, Edu, além de Tuca Andrada (Siqueira), Natália Lage (Isabela, a ex-mulher de Miguel), Eduardo Chagas (o assassino Oliveira), Nicolas Trevijano (policial Diogo), Helena Rinaldi (Julia Machado) e outros do grande elenco.
Lacunas.
A edição e a montagem do filme pecaram em alguns aspectos. Apesar do apuro visual de boa parte do longa, uma ótima caracterização do personagem e até o exagero que encontramos em obras como The Spirit, onde os vilões são caricatos, faltou um pouco de calma ao finalizar o filme e prepará-lo para exibição. Digo isso em função dos cortes secos e rápidos em muitas cenas que, infelizmente, dificultam a compreensão dos fatos.
Mas convenhamos que o nível do filme está altíssimo e corajoso em diversas etapas, principalmente na ação e violência. Os efeitos especiais são um espetáculo à parte.
Um Brasil fictício baseado em um Brasil real.
Esse é o resumo do que assistirão no filme. O lugar onde o vigilante age pode ser qualquer uma das capitais violentas de nosso país. Os políticos são exatamente iguais aos que há décadas mantemos no poder. A corrupção tem o mesmo impacto. Diante de um caos tão grande, movido pelo ódio e por um senso de justiça extremado, porém condizente com aquilo que muitos gostariam de fazer, desesperado diante da tragédia que se abateu sobre sua vida, pouco resta a Miguel além da luta por corrigir tudo o que ele odeia.
Cabe a vocês o julgamento sobre o que é certo ou errado…
Uma das cenas que mostra a “origem” do Doutrinador se baseia nos confrontos entre manifestantes e a polícia durante os protestos de junho e julho de 2013 iniciados por causa do aumento das passagens em 20 centavos. Essas manifestações, inclusive, deram maior visibilidade aos quadrinhos do personagem e alavancaram as vendas da obra de Luciano Cunha.
Em diversos pontos da trama eu fique extremamente incomodado com as presenças e o cinismo de alguns personagens que simbolizam aqueles cujo poder está em suas mãos. O Brasil é governado por pessoas que só se preocupam com suas realidades imperialistas, palacianas. Homens e mulheres que escondem, com roupas de grife e carros de luxo, a lepra moral que os contaminou. Tal como em nossa realidade, Miguel e seu alter ego, o Doutrinador, convivem com o lixo humano que tem todas as ferramentas para melhorar a vida do cidadão comum, mas prefere ajudar a aumentar a própria riqueza. Contra esses monstros que matam ao tirar dinheiro público da saúde, da educação, da segurança… sempre existirá um Doutrinador.
O tempo das ovelhas mansas acabou…