Resenha de “O livro do Cemitério”, de Neil Gaiman
“A mão estava no escuro e segurava uma faca”
Para Ninguém Owens, criado desde bebê por fantasmas e seres de outro mundo, a morte é apenas a morte e o perigo está na vida, do outro lado dos portões do cemitério. Lida com os vivos é a lição mais difícil que o menino terá de aprender. Tão difícil quanto crescer.
Neil já havia citado em algumas entrevistas que sua inspiração para escrever “The graveyard book” era o clássico “O livro da selva” ou “The jungle book”. Para os que não se situaram, este é o livro que mostra a aventura do menino Mogli. As referências são muitas, desde o menino órfão até o protetor e mestre do garoto. Os ambientes são diferentes, porém são verdadeiras “selvas” onde as regras precisam ser seguidas e os ensinamentos levados a sério.
Assim é a vida de Ninguém Owens após a morte de seus pais e a adoção pelos fantasmas. Mesmo sob a tutela dos mortos, tal como Mogli, Nin é perseguido pelo assassino de sua família até quase a idade adulta. Em o Livro da Selva, a floresta e os animais “ocultam” e doutrinam Mogli, ao passo em que no Livro do Cemitério, os mortos e o próprio cemitério literalmente ocultam o menino de seu algoz.
Com os falecidos, que tem sentimentos e comportamentos iguais aos vivos, o menino é criado com amor e as reprimendas normais a que todas as crianças estão sujeitas. Não há diferenças – apesar de tudo – da criação de Ninguém com a de outras crianças, já que a essência do carinho da família não lhe foi negada.
O livro mostra a evolução do menino a adolescente de forma coesa, ainda que seja um romance pequeno em quantidade de páginas. Nin cresce e aprende com os seus, conhece pessoas, conhece mortos e desenvolve a Liberdade do Cemitério, com dons iguais aos dos mortos.
Ainda que haja ação e passagens tensas, o que fica ao final da leitura é a lição sobre a importância da família, dos valores familiares e a força dos que amam, pois é esse mesmo amor que transforma um bebê em um jovem, ainda que assassinos, fantasmas e outras situações indiquem ao contrário.
Gostei de algumas passagens onde fica evidente o trabalho de pesquisa do autor sobre os cemitérios e rituais funerários antigos:
“- É solo consagrado, disse Silas. – Sabe o que isso quer dizer?
– Não mesmo – disse Nin.
Silas andou pelo caminho sem perturbar uma folha caída que fosse e se sentou no banco ao lado de Nin.
– Existem aqueles – disse ele, em sua voz sedosa – que acreditam que toda terra é sagrada. Que ela era sagrada antes de existirmos e será depois. Aqui, em seu país, no entanto, eles abençoaram as igrejas e o solo onde enterram as pessoas, para torná-los sagrados. Mas ao lado de terreno consagrado deixaram terra não consagrada, a Vala Comum, para enterrar os criminosos, os suicídas e aqueles que não são da mesma fé.
– Então as pessoas enterradas do outro lado da cerca são más?
Silas ergueu uma sobrancelha perfeita.
– Hummmmm? Ah, não, de forma alguma…”
Neil Gaiman traz um romance leve, porém extremamente bem escrito e de fácil e agradável leitura. As ilustrações de Dave McKean, antigo colaborar de Gaiman, acrescentam positivamente à obrar. Como disse inicialmente, o autor dispensa apresentações e, para variar, esta obra dispensa recomendações, tamanha sua qualidade. Uma nota que não posso deixar de lançar é que a maior parte do romance se passa em um antigo e abandonado cemitério, limitando fisicamente a ação, o que não implica em dizer que a imaginação e a criatividade tenham sido minimizadas ou limitadas. Ah! Preparem os lenços para o capítulo 8, um dos mais bonitos e emocionantes que já li em um livro.