Em meio ao descaso da administração e os misteriosos caminhões levando as maquinas na calada da noite, os trabalhadores de uma fábrica de elevadores percebem a vinda das suas férias permanentes, um eufemismo para demissão. Alguns tendo família para criar ou complementar a renda de casa, outros simplesmente sem ter outro meio de subsistência, somado a indenização insuficiente para garantir a sobrevivência durante a crise econômica global em Portugal e na Europa, uma decisão foi tomada: ocupar a fábrica.
Em meio ao caos e desordem na vida de todos, o personagem central é José Smith Vargas, um vocalista de uma banda punk, trabalhador no setor de peças, marido da manicure Carla Galvão e padastro de Njayme Sebastião . Ainda sendo dependente das ordens dos lideres grevistas como Hermínio Amaro e do intelectual esquerdista Daniele Incalcaterra, ele ainda mantém seu pensamento crítico e livre expressão ao lembrar de não se tratar de uma mera experiência cinematográfica ou coreografia viral em sites de vídeos e sim ser humanos em busca de um meio de vida ao passe dos discursos, analises e teses dos ditos eruditos e defensores dos oprimidos e explorados distante do humanismo real da questão.
Filme vencedor do premio FIPRESCI (Fédération Internationale de la Presse Cinématographique, em português, Federação Internacional de Críticos de Cinema) de Cannes, a inspiração foram uma peça de teatro de Judith Herzberg, De Nietsfabriek, encenada pela primeira vez em 1997, nascendo depois de um argumento de Jorge Silva Melo virando roteiro escrito por Tiago Hespanha, Luisa Homem, Leonor Noivo e Pedro Pinho, este último, o diretor do longa. Da peça, somente o subenredo da relação conjugal em crise durante uma greve trabalhista. E um fato inspirador disso foi a empresa Otis de elevadores, uma empresa de autogestão fundada durante a Revolução dos Cravos em 1976 e abriu falência em 2016 ao final das filmagens.
No modelo de autogestão, a fábrica Fateleva como era conhecida na zona da Póvoa de Santa Iria, os próprios trabalhadores são os donos, gerentes, administradores e os operários da fábrica sem as hierarquias de funções, cargos ou salários. Na tela, ela própria é o set de filmagem junto com o elenco formado pelos membros. Por isso, atores e personagens compartilham histórias em comum. Lá todos interpretam a si mesmo sem mudança de nome, os próprios operários contam a história pessoal e da empresa. A cenografia tornou o ambiente experimental ao unir ficção com o documentário com a inclusão de momentos musicais estilo Bollywood, a indústria de cinema indiana cujo nome plagia a versão americana, cenas de bastidores em momentos de relaxamento ou entrevistas com elenco.
A produção do filme é bastante autônoma, tanto no roteiro coletivo como na constituição da produtora independente Terratreme, composta por quatro diretores e um produtor. Isso não é novidade nas terras lusas, já houve casos parecidos como a experiência cooperativa, no cinema português, do “Centro Português do Cinema” (1969) inspirados no Grupo Dziga Vertov formado por Godard e Gorin.
Para encontrar referencial a obra, temos o sul-coreano Cart também inspirado em fato, como a greve de funcionárias temporárias e fixas de um supermercado, O filme Dançando no Escuro de Lars Von Trier pelos breves momentos musicais feito pelo José Vargas também responsável pela trilha sonora. E o documentário feito pelo Danièle Incalcaterra, Fasinpat (Fábrica sin patrón) (2004), diretor e produtor italiano na vida real.
Em quase três horas de filme, durante o segundo ato, ele é permeado de um narrador em off discursando sobre a crise econômica em Portugal. Desempregos, globalização e necessidade extrema de adaptação trabalhista e flexibilidade de função em oposição aos discursos de direitos trabalhistas, oposição entre horas de trabalho, salário pago e lucros rendidos a partir daí, seja em voice in off ou durante uma roda de conversa em cena ou ainda, respondendo a perguntas do diretor por meio de entrevistas.
A construção do enredo embora atual foi inspirada totalmente nos anos 70 dominado por essa presença de aula de sociologia, para aula de filosofia política, música de punk rock, pornô, escatologia, uso de drogas e conflitos de gerações como o José e seu pai em meio a metáforas sobre a necessidade de grupos armados pró-revolução, a volta ao primitivismo como a plantação e a caça para subsistência e as sequencias de boemia dos grevistas.
Fora isso, o filme é uma experiência cinematográfica por quebrar diversos cânones da sétima arte e uma inspiração para sonhadores querendo vencer na vida em sistema de opressão sem sentido.
Trailer
Nome original: A Fábrica de Nada
Direção: Pedro Pinho
Roteiro: Pedro Pinho, Luísa Homem, Leonor Noivo, Tiago Hespanha, Jorge Silva Melo e os funcionários da empresa Otis baseado na peça De Nietsfabriek de Judith Herzberg.
Elenco: José Smith Vargas, Carla Galvão, Njayme Sebastião, Hermínio Amaro, Daniele Incalcaterra.