O cinema sempre viveu de ciclos que ficaram populares em uma certa época para depois retornarem após algum tempo fora da atenção do grande público. Foi assim com os westerns, os musicais e novas ondas de terror (precipitadamente chamadas de pós-terror). Ultimamente algo parecido vem acontecendo não com um gênero, mas com uma temática específica: o narcotráfico. Seus casos reais repletos de histórias fantásticas e perfeitas para serem transformadas em cinematográficas diante de sua natureza espetacular (no sentido de assombroso) vêm sendo constantemente adaptadas para obras populares como Escobar: Paraíso Perdido (2014), Conexão Escobar (2016), Feito na América (2017), além da série Narcos e diversos documentários, todas elas sobre o auge – ou um dos – do bilionário tráfico de cocaína, principalmente vindo do famoso Cartel de Mendellín, e seus problemas para a América Latina e os EUA. Como se ainda não tivéssemos o bastante sobre o homem por trás de tudo, Escobar – A Traição é mais uma versão biográfica daquele que foi um dos homens mais ricos do planeta na década de 1980.
Dessa vez, adaptado do romance Amando Pablo, Odiando Escobar (2017), escrito pela ex-modelo e apresentadora colombiana Virginia Vallejo (interpretada aqui por Penélope Cruz), o filme abarca a ascensão e queda de Pablo Escobar (Javier Bardem) sob seu ponto de vista, a partir do relacionamento que manteve com ele durante vários anos, desde a fundação do Cartel de Mendellín até o seu declínio.
Iniciando no momento em que Virginia é conduzida pelo agente americano encarregado da operação para capturar o traficante, Shepard (Peter Sarsgaard), o 1º ato nos introduz a um ponto da história onde o clima paranoico impera por causa da violência causada pela caça a Pablo, pelo clima de guerra entre carteis e, claro, pela insegurança em relação aos que conviveram com ele e agora são obrigados a viver sob constante proteção policial. A personagem aparenta nervosismo, mas mantém uma postura orgulhosa de quem aprendeu a conservar as aparências, característica que a fez se destacar como modelo e apresentando um popular programa de televisão na Colômbia. A partir daí, um flashback mostra o momento do primeiro contato com quem viria a ser o maior chefe do tráfico mundial, quando ainda estava reunindo seus peões (juízes, políticos e grandes personalidades) para construir sua influência sob as principais figuras do país.
Aliás, uma das qualidades desse longa é justamente a reconstrução de época e como sua figura foi trabalhada como um ícone para servir de inspiração para um povo colombiano pobre, que via nele um salvador empreendendo a favor deles, advogando por suas causas em público e investindo dinheiro em grandes projetos habitacionais. Por trás disso – não muito evidente até então para esse mesmo povo – seus verdadeiros negócios eram também a causa da grande violência gerada pelo consumo e tráfico de cocaína, cujo lucro astronômico o transformou em uma das figuras mais ricas do mundo. Temido e amado por muitos, basicamente foi o responsável por orquestrar a onda de consumo da droga nos EUA nos anos 80.
Como se percebe, essa propensão inicial não lhe diferencia muito do populismo de outros grandes políticos (já em relação ao tráfico, não posso afirmar nada…) e não à toa, tentou entrar na carreira ao se tornar suplente no congresso colombiano, como parte de um a tentativa para influenciar a legislação a ir contra um tratado de extradição proposto pelos EUA para que os traficantes fossem julgados no sistema americano. É outro bom elemento do filme que expõe a corrupção dentro do “mecanismo democrático” de influências, subornos e ameaças na política do país. Enquanto isso, na terra do Tio Sam, as políticas de combate ao narcotráfico se intensificavam sob o governo de Ronald Reagan, sendo a repressão à recente chegada em massa de cocaína no território americano uma de suas principais bandeiras – o que gera, aliás, a curiosa cena onde após reproduzir um famoso pronunciamento do presidente americano na televisão, ele aconselha seu filho pequeno a escutar a primeira-dama Nancy Reagan e jamais aceitar drogas de ninguém, explicando, em seguida, que só produz, mas não consome jamais.
Interpretado por um dos atores mais talentosos em atividade, Pablo Escobar ganha mais uma ótima caracterização nas telas. Inicialmente se mostrando tímido quando é obrigado a falar em público ou a reagir aos flertes de Virginia, Javier Bardem compõe o homem nos mínimos detalhes. Para isso, basta observar, por exemplo, a maneira como sua postura dura é retraída quando tenta projetar a imagem de um popular homem de negócios, como se estivesse guardando suas diversas facetas dentro de si mesmo; por outro lado, o ator é inteligente ao sempre manter uma expressão de ameaça no olhar, intensificando o tom de poder que emana em volta de seus associados.
Se há algo que podemos falar de Escobar – A Traição é que muitos de seus méritos vêm justamente das atuações, responsáveis por tentar fazer o espectador mergulhar nas personalidades representadas, já que o texto jamais vai muito longe no quesito. É por causa de Bardem e Penélope Cruz que o público ganha a referência sobre o teor crescente de tensão e violência à medida que avança a relação entre os dois – representada em uma ótima cena onde Virginia passa de um encontro casual ao terror psicológico quando Escobar a presenteia com uma arma para se defender, descrevendo as terríveis formas de tortura a que seria submetida caso fosse capturada por seus inimigos. Parte da identificação vem do esforço da atriz de conceber alguma profundidade a uma personagem quase novelesca.
Infelizmente, um dos problemas se encontra justamente no foco narrativo em relação a quem deveria ser a protagonista. Tudo o que aprendemos de Virginia é basicamente o que permite a superficialidade do roteiro, escrito pelo também diretor Fernando León de Aranoa. Para uma história que é adaptada sob um ponto de vista particular de quem testemunhou de perto várias passagens sobre o mito do chefão do tráfico, a narrativa praticamente a coloca de lado e faz com que o parceiro seja o verdadeiro centro dos conflitos. Mesmo assim, conhecemos mais dele pelas reproduções de passagens famosas de sua vida do que propriamente uma investigação profunda de sua personalidade.
Fora isso, é impossível não analisar a obra sob a influência de outras semelhantes. Do ponto de vista de uma cinebiografia, o filme faz o básico e operante do gênero: é episódico ao querer abordar os principais momentos do personagem e os reproduz bem como uma versão ficcional que funciona para quem ainda não conhece quase nada de sua vida; por outro lado, também sofre por ser uma versão já desgastada de outras que exploraram com mais afinco (e melhor) sua trajetória naturalmente cinematográfica. Apesar disso, há momentos inspirados sob a condução de Aranoa, que dirige a narrativa com segurança, deixando bastante espaço para salientar os bons valores de produção, com pelo menos uma excelente sequência – filmada em um único plano – que mostra um personagem escapando de uma perseguição em meio a densas florestas colombianas.
Prejudicado também por uma narração em off de Virginia excessivamente didática e expositiva, além de robótica, Escobar – A Traição pouco se diferencia em termos de estrutura, surgindo como uma história que chegou atrasada depois que tanta gente já explorou a vida e carreira (sem trocadilhos) de Pablo Escobar. O resultado é até satisfatório pela boa direção de Aranoa e pela boa reprodução histórica, mas a impressão que fica é que gostaríamos de ver a Bardem e Cruz tendo uma segunda chance.
Nota:
Trailer
https://www.youtube.com/watch?v=3aQMcc4YXWo
Data de lançamento: 16 de agosto de 2018 (2h 5min)
Direção: Fernando León de Aranoa
Elenco: Javier Bardem, Penélope Cruz, Peter Sarsgaard, Julieth Restrepo, Óscar Jaenada
Sinopse: Baseado nas memórias de Virginia Vallejo no livro “Amando a Pablo, Odiando a Escobar”, jornalista que teve um caso com o bandido na década de 1980, o filme retrata o surgimento do cartel de drogas na Colômbia comandado por Pablo Escobar.