Governos e ações equivocadas colaboraram para que a visão popular sobre a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro denegrisse de forma quase irreversível. O documentário Rio do Medo (que estreia hoje) é um achado por abordar a versão de homens e mulheres da PM que se entregam de corpo e alma ao ofício de proteger, ainda que ao custo da própria vida.
A realidade da Polícia Militar.
Não adianta disfarçar ou fingir que não existem maus profissionais na PM. Toda e qualquer instituição onde o ser humano estiver incluído estará sujeita a problemas. Óbvio que isso não é desculpa para falhas em um serviço onde as vidas do profissional e da população estão em constante risco, principalmente diante de conflitos.
A PM conta com sua Corregedoria, serviço de auxílio psicológico e psiquiátrico, cursos preparatórios de bom nível e outras ferramentas que são indispensáveis para a manutenção do material mais importante dela: o policial. Isso, entretanto, não é fator impeditivo para que maus profissionais sejam inseridos. A seleção existe sim, assim como existe o ser humano que finge e disfarça a índole, corrompendo futuramente a corporação com seus atos criminosos.
Rio do Medo dá destaque para os bons profissionais, aqueles que fazem do ofício de ser policial uma paixão. Os depoimentos são emocionantes e mostram que, mesmo sob a pressão de expor a vida diariamente ao perigo, esses policiais gostam do que fazem. Oficiais e praças da PMERJ depõem e comprovam que o material humano de lá é muito bom, digno e preocupado em fazer o melhor trabalho possível, apesar dos escassos recursos.
Sobre os parcos recursos, acredito que isso é visível em nosso cotidiano. Viaturas em péssimo estado, coletes vencidos, armas que falham (lembram das pistolas Taurus que disparavam ao cair ou sozinhas?), salários baixos e, para piorar, o ódio de uma parte da população que considera o policial um inimigo. Total descaso e inversão de valores tornam a rotina do PM em um caos. Aliás, as polícias de quase todos os estados do Brasil estão entregues à própria sorte, exceto a de Brasília (por que será?).
Medo.
Esse é um ponto triste do documentário, aquele no qual alguns dos entrevistados mostram que são policiais por convicção, mas precisam esconder isso por medo de represálias, principalmente contra suas famílias.
Essa situação é comum não só entre os policiais. Homens e mulheres das Forças Armadas são obrigados a esconder suas carteiras de identidade militar, além de pedirem aos familiares para que não comentem que são militares. Ou seja, hoje o bandido faz questão de mostrar o que é, enquanto os militares são forçados a ter uma “identidade secreta” para que não sejam mortos em tocaias. Triste demais…
Evolução.
O militarismo presente nas polícias e nas FFAA mudou muito nos últimos trinta anos. Hoje, o policial militar é muito mais preparado, muitos têm nível superior ou estão cursando. A truculência vista em algumas ações é fruto de uma Guerra que o governo estadual e a prefeitura fazem questão de camuflar para dar a falsa sensação de segurança.
O policial é tratado por uma maioria da população de um jeito absurdamente indiferente ou com ódio. Não nos deparamos com cenas de apoio e respeito tão comuns em países como os EUA, Canadá e outros. Na verdade, o PM é quase um ser invisível, cuja presença é “aturada” por uma parcela dos cidadãos.
É vital que esse conceito se modifique. Claro, isso não ocorrerá só por parte da população. Policiais precisam evidenciar uma evolução, um preparo ainda maior para a função, mas isso com a colaboração do Governo que deve reaparelhar a Força, aumentar o efetivo, aumentar salários e implantar uma polícia de proximidade, aquela que não será vista como um inimigo pelo cidadão comum.
Ao contrário de muitas instituições, inclusive a pior de todas que é a política, a polícia (militar e civil) tem aparato e leis que levam o mau policial a ser expulso da corporação. O elemento comprovadamente fora dos padrões comportamentais e éticos será sumariamente eliminado das fileiras, após uma apuração imparcial dos fatos. Essa é a famosa separação do joio e do trigo.
Tropa de Elite.
Pode parecer brincadeira, mas esse é um ponto muito interessante do filme: a influência de Tropa de Elite, dirigido por José Padilha, no comportamento do cidadão carioca.
Caso não se lembre, o filme mostrava o cotidiano do Bope e seus integrantes, em especial o capitão Nascimento (Wagner Moura). Em paralelo a isso, há a ascensão de dois jovens dentro da polícia – que culminará com o ingresso deles na tropa de elite – e também retrata de modo muito fiel a rotina nas favelas do Rio de Janeiro.
Mas não parava por aí. No longa é possível ver o conluio entre policiais corruptos e a polícia, a caça às bruxas promovida contra a PM, além da abordagem de um ponto pouco comum em filmes nacionais: o cotidiano do policial e os estragos promovidos na vida dele por conta da rotina extenuante.
Tropa de Elite também ganhou notoriedade por mostrar com muito sarcasmo a corrupção dos policiais. Frases como “Para eu te ajudar, você tem que me ajudar”, “Nunca serão”, “Não vai subir ninguém”, entre outras, ganharam espaço na cultura popular e foram repetidas exaustivamente por pessoas de todas as idades.
Entretanto, um ponto negativo ficou fixo à memória. A tranquilidade só viria com a morte do traficante, algo que pode ter colaborado para criar na população a imagem de um policial justiceiro ou, ainda pior, instigar que os futuros policiais (muitos foram espectadores da bora) se transformassem em novos “Capitães Nascimento”.
O lado “glamouroso” do tráfico foi igualmente mostrado. De lá também vimos o convívio pacífico entre fornecedor e usuário de drogas, além de outros conceitos interessantíssimos.
Resumidamente, o longa-metragem serviu como influência para muitas pessoas que optaram por ingressar na força policial em nome da justiça que os personagens fazem. Pode parecer brincadeira, mas essa é realmente uma possibilidade que Rio do Medo destaca com muita propriedade.
Coragem.
Em função das contínuas tragédias no Rio de Janeiro, alguns espectadores estavam aguardando um documentário que fosse parcial, isto é, ou de apoio à polícia ou voltado às vítimas das ações policiais. Na verdade, o que assistimos em Rio do Medo é uma aula de psicologia capaz de evidenciar que o policial e o cidadão são vítimas de um processo longo, histórico e crônico de descaso com a segurança pública, hoje tratada como moeda de troca em época de eleições.
As perdas ainda ocorrerão lamentavelmente. Bandidos, policiais e cidadãos morrerão nesse confronto diário que é alimentado por quem realmente está no poder. Enquanto a polícia for tratada como massa descartável de manobra, enquanto a educação e a cidadania não chegarem às áreas pobres, enquanto uma parcela da população apoiar e financiar o tráfico de drogas… estaremos à mercê da violência e da tragédia. É preciso rever conceitos e tomar atitudes, porém é vital ressaltar que o policial não é nosso inimigo. Com coragem e ao custo da sanidade mental, da saúde corporal e até da própria vida, homens e mulheres lutam para manter um mínimo de segurança em um estado que foi entregue ao crime há décadas.
Por esse atributo e também por mostrar que há policiais bons, capacitados e com vontade de transformar realmente o Rio de Janeiro em uma cidade melhor, Rio do Medo é um documentário que precisa ser visto.