Confesso que nunca tinha ouvido falar sobre a obra The Glass Castle, nem do filme, cujo conteúdo fui saber pouco tempo antes, e nem ao menos do livro – este mais um grande best-seller das prateleiras autobiográficas com histórias inspiradoras e com aquele grande potencial para virar uma adaptação cinematográfica. Afinal, histórias com grandes arcos de superação são universais, tanto geograficamente como em termos de mídia, e costumam ter os elementos básicos para o tipo de narrativa que costuma agradar grande parte do público: grandes dilemas e obstáculos que se transformam numa autoimagem utópica de sucesso para cada um de nós. Sim, a história em si não é fantasiosa, mas é daquela cuja essência passa pelo tratamento hollywoodiano, se transformando numa obra que, embora tenha sua parcela de clichês e atalhos emocionais, consegue cativar pelos bons momentos e pelas grandes atuações.
O filme é uma adaptação do livro homônimo escrito por Jeannette Walls e conta as memórias de sua vida com sua família durante o período de infância até o início da fase adulta. Vivida por Brie Larson, Walls vive as dificuldades e alegrias de uma experiência nada convencional causada pela condição pobre de seus pais, a pintora Rose Mary (Naomi Watts) e o problemático sonhador aspirante a engenheiro Rex (Woody Harrelson). O casal e os filhos, Walls e mais três irmãos, mudam constantemente de local para fugir das dívidas enquanto levam uma vida que prega o desapego em troca de uma felicidade imediatista e perigosa.
Estabelecendo um contraste entre uma Walls adulta, que nos é apresentada conversando sobre o trabalho como escritora de uma coluna jornalística de fofoca, sentada em uma mesa de um restaurante chique e disfarçando suas origens, e sua versão criança sofrendo um acidente doméstico, numa clara situação de negligência por parte de sua mãe, mas, ainda assim, encarando os pais como heróis por retirá-la das garras do hospital que “só serve ao sistema”, o filme constrói a base sobre a qual fará sua reflexão: até que ponto podemos questionar a maneira como cada geração cuida da próxima e, principalmente, o quão difícil é separar o amor pelos filhos da incapacidade dos pais de enxergarem seus erros, justamente pelo fato de acharem estar fundamentadas em seus papeis sociais? O choque usual de geração já o suficiente para servir de possível desgaste para uma relação familiar; pior ainda, quando esta encontra potencialização num ambiente peculiar, por vezes, disfuncional e violento.
Com isso, o grande trunfo do longa é não deixar que fiquemos apenas em um dos extremos da equação: ou Rose Mary e Rex são pais completamente irresponsáveis e incapazes ou são amorosos e incompreendidos por uma sociedade materialista e determinista. É difícil duvidar, por exemplo, do amor que Rex tem pela filha quando a faz enxergar uma vida repleta de pequenas possibilidades de felicidade, ensinando a encontrar o sucesso onde a maioria das pessoas só encontra o vazio. Mas também é impossível dissociar o estilo de vida aos métodos que beiram à tortura psicológica, como acontece, por exemplo, quando Rex tenta ensinar a filha a nadar quase a afogando no processo. Essa dualidade entre o homem que parece ter uma mente completamente livre de preconceitos e a peculiar visão de mundo que flerta com o puro egocentrismo é que faz com que o núcleo familiar retratado seja tão interessante.
Dirigido por Destin Daniel Cretton, que já tinha revelado o talento de protagonista para Brie Larson em Temporário 12, o filme é hábil em transitar entre o presente e o passado para construir a intensidade com a qual a família de Walls molda a personalidade da filha. Assim, Larson tem o talento de misturar um sentimento de vergonha e distanciamento do estilo de vida dos pais com características herdadas invariavelmente do pai, como uma determinação feroz e uma reação de teimosia quando confrontada por problemas. Claramente afetada pela dura infância que teve, a personagem carrega constantemente a raiva ao mesmo tempo em que se sente incapaz de ignorar a influência dos ensinamentos dos pais em sua vida. É particularmente comovente notar como a figura heroica dos pais na infância se choca com a constatação de pena pela protagonista adulta, quando esta percebe que a imagem guardada na memória afetiva era parte de uma ilusão auto estabelecida na tentativa de resguardar um passado distante.
Mas em questão de performance, Woody Harrelson é quem brilha em sua caracterização como Rex. Inegavelmente um homem inteligente, o “patriarca” é espirituoso de sobra e capaz de demonstrar das maneiras mais sinceras a vontade legítima de manter sua família unida sob valores quase anárquicos, e a determinação e criatividade que exibe para fazê-lo quase nos fazem esquecer de seus problemas (ainda aceitáveis no 1º ato). O ator é inteligente, também, em não deixar que Rex soe maniqueísta, já que sua personalidade é complexa o bastante para que consigamos entender que sua agressividade não parte de pura maldade, mesmo que, de fato, esta cause efeitos devastadores. Portanto, mesmo quando seu lado sombrio toma conta – este, por causa de seu alcoolismo e traumas passados – o personagem demonstra um constante conflito que se traduz em suas expressões e acabam servindo para que ele sempre desperte a nossa atenção, para o bem ou para mal.
O roteiro, também escrito pelo diretor, tem a qualidade de usar alguns elementos na história da protagonista para ancorar seu aprendizado à trajetória problemática do pai. Aos poucos, toda a fantasia de uma família com valores diferentes e aventureiros vai sendo substituída por uma inevitável realidade que bate de frente com as intenções bondosas de Rose Mary e Rex (o ditado diz que o inferno está cheio delas, não é mesmo?). Dessa maneira, a promessa do pai em construir uma casa dos sonhos para família, repleta de janelas de vidro e teto vazado para que “possam ver as estrelas”, vai dando lugar a um projeto que jamais sai do papel. Sendo assim, é triste notar como Walls, já crescida, encara o entulho que se amontoa no local onde, há anos, Rex prometia começar a obra dos seus sonhos: uma boa simbologia que acaba por nos fazer entender as escolhas da protagonista em relação à sua família.
É uma pena que Cretton não resista aos clichês quando pretende inserir um conto de moral na narrativa quando o expectador já havia absorvido os conflitos por si só. Novamente, os fatos são baseados na realidade, mas a narrativa acaba por reduzi-los aos conhecidos momentos de revelação melodramáticas, quando um personagem resolve resumir e enunciar seus conflitos através de uma exposição (geralmente num local repleto de estranhos) enquanto muda totalmente sua visão de mundo em prol da um fechamento imediato e satisfatório para os anseios do público. Era mais interessante quando podíamos entender os problemas de Walls e o amor de seus pais justamente pela complexidade da problemática relação entre eles, mas o filme acaba quase desculpando todas as características negativas da história para que possamos nos emocionar.
E é possível se emocionar em O Castelo de Vidro? Certamente que sim, mas o resultado acaba se justificando mais pelo carisma dos personagens, frutos de atuações mais do que seguras, do que exatamente pela continuidade da complicada relação entre pai e filha. Nesse sentido – e, ao menos, na conclusão – a história real funciona melhor do que seu tratamento pela adaptação, que acabara aparando as pontas da realidade a fim de dar um final mais “cinematográfico”.
Claro, é cinema, não é? Então também não vamos transformar o cinematográfico em defeito. No máximo, uma potencial limitação.
Trailer
https://www.youtube.com/watch?v=l8Wz2ALNn7s
Nota:
Data de Lançamento: 24 de agosto de 2017 (2h 7min)
Direção: Daniel Destin Creston
Elenco: Brie Larson, Woody Harrelson, Naomi Watts, Max Greenfield, Josh Caras, Sarah Snook, Brigette Lundy-Paine, Ella Anderson
Sinopse: Uma família disfuncional viajava o tempo todo, sem se preocupar com o futuro. Quando o dinheiro dos pais acabou, Jeanette e o irmão tiveram que cuidar de si mesmos, até conseguirem ir embora.