O Homem que Amava os Cachorros
Mas a você demos todas as pistas para que descobrisse a verdade e você não quis descobri-la. Sabe por quê? Porque gostava de ser como era.
Quantas vezes você já viu esta história: um jovem promissor e com talento é recrutado por uma misteriosa e poderosa organização para ser treinado à exaustão e realizar um ato com repercussão mundial, que influirá na história da humanidade?
Se você der um passo além da ficção e quiser entender uma das muitas fontes desse roteiro repetido, seu livro é ‘O Homem que Amava os Cachorros’.
Mas ele é o seu livro, também, por outros motivos.
‘O Homem que Amava os Cachorros’ conta, com acuidade e de forma interessante, grande parte da história da Guerra Civil Espanhola, da Revolução Cubana e do Regime Soviético. Esses eventos, que ainda influenciam o panorama mundial e o nosso cotidiano, são o pano de fundo para a trama que culminou no assassinato de Liev Davidovitch, mais conhecido como Leon Trótski.
O livro, narrado ora em primeira, ora em terceira pessoa, tem três focos. O primeiro acompanha a trajetória de Iván Cárdenas Maturell, um escritor fictício, reprimido pelo regime cubano, em uma vida sempre tangenciando a linha da miséria, da depressão e da frustração. O segundo, a vida de Ramón Mercander, combatente da guerra civil espanhola, que é recrutado para ser treinado pelo serviço de inteligência soviético para se tornar um agente e um assassino. O terceiro acompanha Trótski, o único que poderia rivalizar com Stálin na condução internacional do movimento socialista e a vítima do crime em questão (muito embora “vítima” seja um termo que não se ajuste bem a ele por seus feitos e por seus atos, elogiáveis e condenáveis, no correr de sua vida).
No entorno deles, há personagens que compõem um quadro bem construído da efervescência política que marcou principalmente a primeira metade do século XX. Kotov, por exemplo, é o mentor de Ramón Mercander. Um revolucionário habituado a sobreviver aos constantes expurgos e caças às bruxas promovidos por Stálin como forma de se manter no poder por trinta anos. Caridad, mãe de Ramón e amante de Kotov, é um duplo exemplo, tanto da mulher oprimida pelo marido como de burguesa desencantada com a sociedade. Há ainda, os familiares de Trótski, arrastados para destinos trágicos, na maior parte das vezes, por sua inquietude e vida dedicada à causa da revolução permanente.
Todos os personagens são construídos à exaustão. Criam vida no imaginário do leitor e se tornam conhecidos e amigos, provocando aquela sensação de perda quando se chega ao final do livro. É impossível não ficar curioso sobre a biografia de cada um deles, muito embora o livro seja fiel aos fatos conhecidos.
Durante toda a trama, há ainda constantes conflitos de julgamento moral, tanto entre os personagens quanto o leitor. Essa riqueza de zonas cinzas demonstra como a história contorna maniqueísmos fáceis e se aproxima da nossa complexa realidade.
Com todos estes ricos elementos, Leonardo Padura submerge no texto a sua verdadeira personagem principal: a utopia. É ela que marca e conduz a vida de todos os demais personagens. ‘O Homem que Amava os Cachorros’ é uma bem trabalhada reflexão sobre a utopia, o que se pode fazer em nome dela e como ela pode ser deturpada.
Porque o papel de Iván é o de representar a massa, a multidão condenada ao anonimato, e seu personagem funciona também como metáfora de uma geração e como o prosaico resultado de uma luta histórica.
O tom do texto é sombrio. Não há risos escondidos nas suas linhas. Cada personagem está preso aos seus próprios problemas e dificuldades, e isso, somado a um desenvolvimento lento da história, pode afastar alguns leitores. Esse é o principal reparo que faço à obra: poderia ser mais dinâmica, sem perder a sua profundidade. Para aqueles que ficarem tentados a desistir antes do final das suas 600 páginas, no entanto, fica a advertência. Essa é uma obra que não vale somente pelo prazer da sua leitura, mas também por seus dados, por suas reflexões e pela provável mudança da perspectiva histórica do leitor que a termina.
Ramón é um homem de outra época, de um tempo muito decadente, quando nem sequer a dúvida era permitida. Quando ele me contou a sua história, situei-a no seu mundo e no seu tempo, e então pude compreendê-la. Embora, isto sim, nunca tenha sentido compaixão, porque Ramón odiava esse sentimento.
Leonardo Padura recebeu diversos prêmios e o reconhecimento internacional por ‘O Homem que Amava os Cachorros’. Em entrevistas, confessou que queria escrever sobre a sua geração e para a sua geração, que enfrentou os piores anos da revolução cubana, além de resgatar a figura de Trótski.
Se eu o encontrasse, diria que conseguiu.
E foi além. Muito além.