1985: quando os brucutus dominaram as telas

Houve uma época, em um tempo distante, mais precisamente no ano de 1985, onde o Brasil começava a se livrar de uma ditadura militar de 21 anos, em que um festival, em janeiro, mudava a cara da música brasileira (o Rock In Rio) e o sonho de um presidente civil sem vínculos com o regime passado assumisse como presidente (mesmo que indiretamente) ia para o ralo em abril, com a morte de Tancredo Neves. Assumiu o cargo, o coronel filhote dos militares, José Sarney. Isso falando de Brasil, é claro. No mundo éramos tomados por festivais musicais megalomaníacos com o intuito de salvar o planeta, como Live Aid e Michael Jackson e um bando de artistas convidados a deixar o ego de fora, gravaram o clássico We Are the World, no projeto Usa for Africa, onde toda a grana das vendas iria para salvar os esfacelados e famintos africanos. Era ano de rock e música pop no mainstream, com discos vendendo como água. No cinema tivemos estreias de futuros clássicos, como De Volta para o Futuro, Os Goonies, Clube dos Cinco e A Testemunha. Tivemos também grandes diretores, como Kurosawa com seu Ran, Babenco com O Beijo da Mulher Aranha, Luc Besson e seu Subway, Woddy Allen com A Rosa Púrpura do Cairo, mostrando que o cinema não era só pipoca e sessão da tarde. Mas se algo marcou o cinema em 1985 é que o cinema brucutu, aquele feito por atores que davam mais tiros que sorrisos e o roteiro era mais socos e explosões que falas, imperou de vez nas telonas. Era uma época, com o perdão do trocadilho, da vinheta da América Vídeo: os filmes explodiam como dinamite e faziam a tela quase pegar fogo. O ano nos premiou com quatro pérolas do gênero, com os quatro atores mais emblemáticos daquele estilo: Rambo 2 – a Missão, com Sylvester Stallone; Invasão Usa, com Chuck Norris; Desejo de Matar 3, com Charles Bronson e Comando para Matar, com Arnold Schwarzenegger.

Os tempos eram bicudos por 1985. A era Reagan começava a perder sua euforia inicial e a recessão assombrava o bolso dos norte-americanos. E no meio da década de 1980, a Guerra Fria ainda era uma realidade e o medo de que um apertar de botão pusesse tudo pelos ares ainda era dominante no imaginário popular. Russos, terrorismo, violência urbana, fantasmas do Vietnã, republiquetas de bananas fantoches dos Estados Unidos eram uma realidade clara e extremamente sombria. Os filmes de ação representavam esses medos em tom de revanche nas telas. O primeiro a estrear no ano foi Rambo 2 – a Missão, filme dirigido George P. Cosmatos. Com um roteiro com pitacos de James Cameron, mostrava o que ocorreu com John Rambo, anos após ser perseguido numa cidadezinha dos Eua. O confuso veterano de guerra está preso e seu antigo superior, o Coronel Trautmann, oferece uma missão de resgate de possíveis prisioneiros americanos nas terras vietnamitas. Em troca, Rambo ganharia a liberdade. Se o primeiro filme era quase um drama, bem dirigido, que mostrava a dificuldade de adaptação de veteranos de guerra para se inserir na sociedade americana, o segundo não perde tempo com chorumes e reflexão.

Rambo simplesmente é uma máquina de guerra, rancorosa e de poucos amigos que, com sua força descomunal e arsenal bélico, enfrenta nas selvas do Vietnã um exército vietnamita com reforço de tropas soviéticas. Sim, temos soviéticos pra atrapalhar a vida do nosso anti-herói, personificados na imagem do Tenente Coronel Podovsky, sádico militar que manipula os vietnamitas e faz questão de manter os americanos em cativeiro. Embalado por uma trilha que fez sucesso, de Jerry Goldsmith, Rambo não se acanha em matar, empilhando corpos pelo caminho sem dó e ainda tem tempo no fim para cutucar a pasmaceira do governo norte-americano que nada se preocupou com seus heróis perdidos na selva. No filme, Stallone fala uma meia dúzia de frases, não esboça um sorriso e mata dezenas de pessoas. Além de ter servido como inspiração com seu look calça de militar, cabelo comprido e faixa na cabeça para o concurso Rambo Brasileiro que o Viva Noite, do saudoso Gugu, apresentava no SBT e que premiava o brasileiro mais parecido com o Rambo, ah os anos 80… Enfim, Rambo é um divertido abacaxi de uma hora e meia, que mesmo bombardeado pelas críticas, criou um personagem imortal para a galeria da história do cinema.

O segundo filme da leva do cinema brucutu de 1985 foi Invasão Usa, dirigido por Joseph Zito, especialista em slashers dos anos 1980 e que tinha dirigido o primeiro filme da série Braddock, com Chuck Norris. Invasão Usa tem como premissa uma coordenada ação terrorista que chega via mar de Miami, liderados pelo sádico russo Rostov (Richard Lynch), que tem como missão atacar cidades americanas com atos violentos, provocar o caos, confundir a população que se sente acuada e o principal: tirar a liberdade tão celebrada pelos norte-americanos. A única pessoa que pode evitar o caos na América é Matt Hunter, nosso Chuck Norris, ex-agente da Cia, que tenta uma vida “tranquila” caçando crocodilos nos charcos e úmidos campos do sul dos Estados Unidos.

Rostov, só de ouvir o nome de Hunter, se borra de medo (quase foi morto por ele numa missão passada) e tem uma obsessão por liquidar o ex-agente (ele bem que poderia ter matado apenas o Hunter ao invés de atacar a América… enfim). Invasão Usa é um festival de violência, em menos de 10 minutos de filme, já temos amostras disso, quando ocorre um massacre em um barco de imigrantes cubanos que tentavam a vida na América. Com um festival de politicamente incorreto da época, temos explosões em bairros de classe média com famílias felizes montando árvores de Natal e tendo suas casas destruídas. Latinos sendo exterminados a rodo nas saídas de festas, tiroteios em shoppings centers, enfim, um caos urbano. Os terroristas são tão malvados que tentam explodir igrejas e ônibus escolares (naturalmente evitados por nosso herói Hunter em cenas que chegam a ser engraçadas de tão bisonhas). É quase uma terceira guerra mundial urbana, com corpos empilhados, tiros, explosões e tanques (sim, até tanques são acionados), mas para no fim termos um embate cara a cara entre o neurótico Rostov e Hunter. Claro que Norris, mais uma vez sorri pouco, atira muito e infelizmente quase não luta.

Umas das grandes qualidades do Chuck é sua habilidade em caratê, mas nesse filme ele prefere atirar mais que dar socos e chutes. Invasão Usa foi mais uma obra da dupla de produtores israelenses Yoram Globus e Menahem Golan, com sua distribuidora de filmes Cannon, onde foram responsáveis pela metade das pérolas desse gênero, filmes surreais, que literalmente eram dinamite pura. O filme fez muito sucesso no home vídeo e sua fita VHS era constantemente alugada para servir de diversão em família. Sim, eram os anos 1980 e matanças e explosões não eram empecilhos para reunir pai, mãe, filhos e amigos e assistir a America ser quase arrasada e torcer para Chuck Norris salvá-la.

Da mesma leva e com dedo da dupla Globus e Golam e a indefectível Cannon, estreava também Desejo de Matar 3. A polêmica franquia criada nos anos 1970, onde um pacato cidadão, o arquiteto Paul Kersey, ao ver sua família ser destroçada por marginais, resolve limpar a cidade de Nova York assassinando sem piedade qualquer bandido que apareça na sua frente. Dirigido pelo mesmo Michael Winner, que também conduziu a segunda parte, a terceira parte da saga de Kersey é, com certeza, um dos filmes mais surreais da história do cinema. Mas que não deixa de ser divertido, se não levarmos nada a sério. Kersey, Charles Bronson, volta a Nova York para visitar um amigo, companheiro de guerra da Coréia. Mas o parceiro dele mora num bairro barra pesada da cidade. Aliás, barra pesada é apelido. Crimes a céu aberto, assaltos, invasões a apartamentos, bandidos debochados são uma constância da região. Sutter e Belmont, os bairros do filme, são quase uma sucursal do inferno. A visita já começa mal e seu amigo é morto por uma gangue. Kersey ainda tem tempo para ser preso, mas ganha salvo-conduto do inspetor da delegacia devido ao seu passado de justiceiro, para dizimar a bandidagem, já que nem a polícia entra no local.

Então, o que se vê é uma guerra entre os moradores e as violentas gangues da quebrada, lideradas pelo pós-punk andrógino e ultra-violento Manny Fraker (Gavin O’Herlihy), com tinta na testa e espumando raiva. E o que acontece, principalmente no terceiro ato do filme, é uma verdadeira guerra civil em um bairro, com tiros, bombas, facadas, armadilhas, tudo isso no meio da tarde. Paul Kersey consegue via correio trazer armas, como uma 45, usada para matar elefantes e um lança-mísseis. Além de que, seu amigo Bennet (o grande Martim Balsam), guarda uma metralhadora da Segunda Guerra no armário de casa. Simples assim. O filme tem cenas “antológicas”, como a morte do Risadinha, bandido pé de chinelo que rouba as pessoas e sai correndo dando risadas; a população vibrando a morte de cada assaltante como se fosse um gol; Kersey saindo com uma metralhadora na mão pelas ruas atirando em tudo que vê e, é claro, o “triste” fim de Fraker, literalmente explodido pelo novo brinquedinho de Kersey. Desejo de Matar 3, por incrível que pareça, é o filme com mais roteiro desses quatro produtos testosterona made 1985. Apesar de uma profundidade rasa como um pires tem alguns diálogos acima da média para o gênero e certa continuidade da trama. Charles parece realmente estar se divertindo, não levando a sério o besteirol da história. Se o primeiro filme da franquia tinha um quê de drama, vingança e culpa, o segundo um pouco menos, mas com mais plausividade, Desejo de Matar 3 destrói a série, mas se torna um quase cult trash, muito pelas cenas absurdas, os personagens e a ultraviolência sem freio.

Fechando o quarteto de 1985 temos Comando para Matar. Nosso brucutu preferido, Arnold Schwarznegger, é John Matrix, ex-agente de ações especiais de elite que também está tentando viver uma vida pacata nas montanhas, com a filha pequena (uma jovem Alyssa Milano), cortando lenha e tomando sorvete. Só que um ex-soldado do seu destacamento, se vende e alcagueta seus ex-companheiros, se juntando a um ex-ditador de uma república de bananas da América Central. Bennet, seu antigo soldado, hoje um traidor, sequestra a filha de Matrix e exige como resgate que ele mate o presidente de Valverde, a tal república, pois só assim terá sua filhota de volta. Para isso ele tem 11 horas (tempo do voo em que foi mandado até o país), cronometrado no seu relógio, para se armar e salvar sua filha, já que ele escapa do voo e segue uma caçada violenta atrás dos sequestradores.

Mark Lester dirige essa pérola dos anos 1980, transformando Arnold em um quase super-herói. Se Rambo tinha algum sentimento e uma angústia profunda (além de uma mania de perseguição), para Matrix não tem nada que possa parar sua tentativa de reaver a filha. Com cenas que beiram o absurdo, como pular de um avião em movimento, escapar de dezenas de seguranças de um shopping e eliminar todos que se metem no seu caminho, John Matrix é um quase robô feroz e praticamente indestrutível. O diferencial do filme é que ele tem uma ajuda de uma mulher, Cindy (Rae Down Chong), uma figura feminina (Rambo também tem, mas ela é uma agente) e civil, que de sequestrada, passa a ajudar o herói. A ida dele à loja de armas, colocando um arsenal bélico no carrinho de compras é algo incrível. Mas a parte final do filme é quando a tela realmente esquenta. Matrix, ao chegar na ilha do ditador tiraneco, simplesmente sozinho, elimina um exército inteiro de dezenas de mercenários com todos os tipos de jeito, bombas, granadas, faca, metralhadora, pistolas.

Uma pilha de mortos frenética e incontável até chegar no clímax do filme, o confronto com seu ex-soldado, Bennet (Vernom Wells). Diferente dos outros três filmes, temos um embate corpo a corpo entre os dois, uma bela luta na mão entre criador e criatura e acaba, logicamente, com muita fumaça e um sorridente Arnold com sua filhota. Comando para Matar estreou mais pelo fim de 1985 e comandou as bilheterias de 1986, sendo um dos maiores sucessos da década 80 do austríaco fisiculturista.

Pode parecer patético, décadas depois analisar ou tentar dar um ar de profundidade às quatro películas, mas elas eram retratos fiéis de uma era Reagan. Uma era onde o belicismo e o medo imperavam. Tempos em que feridas do Vietnã ainda não haviam sido cicatrizadas e revisionismos começavam a surgir. Cidades norte-americanas começavam a enfrentar sérias crises econômicas, que levaram a índices de desemprego e pobreza caóticos, trazendo como consequência um aumento desenfreado da violência urbana. As ações norte-americanas em países como El Salvador e Nicarágua, que faziam parte da política da época, de influência externa do governo, eram rotineiras nos noticiários da época e o terrorismo global já era uma ameaça, que aos poucos se encravava no território do Tio Sam. E, é claro, a União Soviética e os temíveis comunistas ainda causavam frio na espinha do “cidadão de bem”, que pouco imaginaria que em menos de cinco anos veria seu rival imperialista cair mais fácil que uma carreira de dominós.

As figuras de Rambo, Matrix, Hunter e Kersey eram retratos da América. Uma pátria que sempre necessitou de heróis solitários, com sua coragem única, que vinha dos tempos dos cavaleiros destemidos dos westerns, eram os únicos que podiam enfrentar sozinhos russos, terroristas, gangues urbanas e exércitos golpistas. A salvação do jeito americano de ser vinha dos brucutus, sem piedade e com muito ódio e vingança nas veias. E atores como Sylvester Stallone, Arnold Schwarrzenegger, Charles Bronson e Chuck Norris, representantes mais viris do gênero na época e recordistas de bilheteria, ilustravam fielmente esse ideal.

1985 teve, digamos assim falando, o privilégio de ter esses quatro nomes representados em quatro filmes emblemáticos desse jeito de fazer cinema. Um cinema que jogava às favas o politicamente correto e tentava na arte escrever do seu jeito a história americana. Com muitas explosões, tiros, facadas, mísseis, socos e mortes (para termos de estatísticas, aí vai a tabela de mortes de cada herói: John Matrix, 81 mortes; Paul Kersey, 53; John Rambo, 51 e Hunter, apenas 30 – nos quatro filmes somando todos as vítimas, tivemos 381 cadáveres, uma média de 95 presuntos em cada) a plateia vibrava com os ídolos do momento, fazendo a justiça a seu modo, sem lei e passando, literalmente, o trator por cima de qualquer coisa. Foi um ano em que o cinema brucutu chegava na sua representatividade máxima. Hoje, passados quase quatro décadas desse ano, reassistir esses (por que não?) clássicos é uma diversão. Por mais violento que sejam, com atuações beirando a peças de terceira série do fundamental, roteiros mais vazios que bolso de trabalhador no meio de um mês e diálogos com a profundida de um aquário, eles soam divertidos e em nenhum momento conseguem fazer o espectador levá-los a sério. O excesso de violência, que outrora provocava êxtase, hoje é uma realidade crua em determinadas séries, filmes e games, só que a grande diferença da época para a atualidade é que por mais que aquilo tudo soasse cômico para um espectador dos dias de hoje, aquilo representava dentro do possível, um retrato de uma América violenta, belicista ao extremo e que buscava em impiedosos heróis a única solução para enfrentar os inimigos do status quo e, de preferência, exterminá-los.

 

 

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