Os Intocáveis (1987). Brian de Palma dá uma lição de cinema.

Só os primeiros minutos de Os Intocáveis servem como algemas que o manterão preso ao longa-metragem. Ver Robert de Niro atuando como Al Capone, um homem nefasto e manipulador, mas cercado por bajuladores e pela imprensa é algo que impacta. Essa cena nos remete aos corruptos de hoje, aqueles que riem às custas do sangue e do suor dos trabalhadores. Então, para coroar essa aura de maldade, assistimos horrorizados a uma cena de atentado à bomba.

Cruel, realista, brutal… esse será o fio condutor de todo o filme. E é assim que tem que ser.

Cavaleiro Solitário.

O início da saga de Eliot Ness (Kevin Costner) é desastrosa. A imprensa atua contra ele, os informantes são péssimos e há uma aparente ciência de seus passos por parte dos contraventores. Apesar de ser um agente da lei, tudo indica que a própria lei está contra ele.

Humilhado por seus próprios amigos de profissão, motivo de risos em todos os jornais, Ness precisa de suporte para prosseguir nessa jornada. O tempo do Cruzado Solitário acabou.

Diante do impasse de não ter apoio policial (além da provável corrupção na própria corporação), resta-lhe apelar para agentes verdadeiramente honestos, algo em escassez na cidade de Chicago. Mas a esperança ainda respira – mesmo que por aparelhos – e Ness encontra um ponto de partida para essa jornada perigosa: Jim Malone (Sean Connery). Malone é um policial antigo, doutrinado a responder fogo com fogo, mas ainda assim um homem honesto e dedicado.

Agora, resta obter outros que compartilhem de sua sede de justiça e busquem moralizar a cidade imersa na corrupção.

Corrupção… antiga moradora das cidades e dos corações.

Sim, amigos leitores, a corrupção é tão antiga quanto o ato de falar. Desde tempos imemoriais somos infestados por esta peste que não tem fim. Entretanto, isso não impede que o combate a ela seja feito. Aliás, essa é uma luta que não pode cessar. Com esse pensamento, Ness e Malone partem para compor um grupo que não esteja corrompido pela corrupção. Aos poucos eles conseguem fechar uma equipe que, além deles dois, conta com George Stone (Andy Garcia), um policial que ainda estava na Academia, e o agente Oscar Wallace (Charles Martin Smith), um contador que será vital nessa busca por justiça.


E não se deixem enganar. Capone é um homem que lucra através da corrupção, dos vícios e da violência que ele nutre. Seu sorriso, a fala mansa e coordenada, os pensamentos bem estruturados são apenas ferramentas para esconder um homem que não tolera erros. Ele enriqueceu às custas do ilícito e ser rico é sinônimo de poder que, por sua vez, gera no indivíduo a sensação de onipotência. Logo, quando essa “onipotência” não se mostra tão real, o lado ruim vem à tona.


O poder que manipula, o poder que mata.

Al Capone é uma versão antiga dos “bicheiros” de hoje, uma versão retrô dos milicianos, um verdadeiro câncer cujo alcance só ampliava, conforme sua fortuna crescia. Chicago não é diferente de qualquer outra cidade grande, mesmo as atuais. Apesar da disparidade de épocas, as grandes cidades do mundo sofrem da mesma coerção imposta pelos bandidos. Apesar da falsa sensação de “elegância” e “noir” presentes nos tempos em que Capone estava no auge, os resultados maléficos eram os mesmos de hoje, talvez diferente apenas pelo grau de maldade que hoje alcançou níveis inimagináveis.

Mas era pela manipulação, compra de influência, tráfico de informações e controle de órgãos que deveriam proteger o cidadão que Capone chegou ao status de homem mais perigoso da América. Perigoso e inalcançável. Seus atos aparentes eram apenas o de um contraventor que conseguia bebidas, porém ele fez muito mais: comprou políticos, subornou policiais, matou e transformou Chicago em uma área onde a lei estava subordinada aos seus desejos.

Coragem.

A mais cruel cena do filme envolve um verdadeiro ataque terrorista. Ver as pessoas inocentes que perecerão diante dessa covardia é, em contrapartida, um ato de coragem por parte do diretor e do roteirista.

Impressionante!

Entre porcos e pérolas.

Algo que ofende (devido ao seu grau de veracidade) é a recepção calorosa de todos a um indivíduo maligno, corrupto e assassino. Mesmo com todos esses atributos negativos, a sociedade venera Al Capone, ri de suas piadas e compartilha espaços com ele. O motivo? Simplesmente o dinheiro compra amizades, forja laços e traz uma amnésia quase irreversível.

Pessoas se aproximam de outras, quase sempre, por algum interesse. Talvez também por medo. No caso dos amigos e comparsas de Capone, os dois fatores estavam unidos. Todos queriam algo vindo dele, seja dinheiro ou um favor, assim como temiam sua raiva e os resultados dela. Não havia compaixão nos atos do contraventor, mas quem se importa? Lucros e influência têm um preço… ainda que seja a própria alma.

Alphonse (ou Alphonsus) Gabriel Capone recebeu reconhecimento público e foi considerado o Homem do Ano pela revista Time em 1930, apesar de ser o responsável pelo “Massacre do dia de São Valentim” no ano de 1929. Sua rede de influências e terror abrangia desde a corrida de cavalos até bordéis.

A história por trás da história.

Eliot Ness realmente existiu, assim como o grupo chamado Os Intocáveis. Seus esforços e de sua equipe foram indispensáveis para a prisão de Al Capone, o homem que desafiou Chicago, a Lei Seca e todos os valores morais vigentes à época. Realmente Capone foi pego não pelos crimes de venda ilegal de bebidas, contrabando ou algo similar. Sua queda se deveu ao fato de ter sonegado o Imposto de Renda em suas atividades comerciais lícitas, o que lhe rendeu a prisão por onze anos, dos quais cumpriu apenas oito.

Tanto Capone quanto Ness tiveram o fim de suas vidas de forma trágica. Capone morreu em decorrência de sífilis, com sequelas físicas e mentais. Eliot Ness, por sua vez, após obter a prisão de Al Capone saiu de Chicago e foi secretário de segurança em Cleveland. Sua moral ruiu após ter se evadido de um local de acidente. Ness faleceu em 1957 por problemas cardíacos. Em 1997 ele finalmente teve um funeral decente, onde sua cinzas foram espargidas em uma lagoa no cemitério de Lakeview.

Mesmo com todo o glamour mostrado no filme, Eliot era apenas um humano, sujeito a falhas como todos nós.

 

E a História se repete.

Contrabandistas, traficantes, mafiosos… não importa o nome que lhes seja dado, a verdade é que todos eles contrariam a lei. Homens assim (incluindo o próprio Al Capone) podem se mostrar filantropos e homens de bem para alguns, mas o fato é que eles são um câncer que contamina e destrói a sociedade de forma gradual. Eles não se importam em matar, corromper e impor o medo. Para que se mantenham no poder, são capazes de exterminar famílias, aterrorizar e destruir vidas. Não há retorno para aqueles que se associam a pessoas desse tipo.

Existem até hoje uma infinidade de cidades parecidas com a Chicago de Capone. O crime organizado (e muito mais violento) atua em locais como Tokyo, Rio de Janeiro, Los Angeles, Guadalajara, Acapulco, São Paulo, Londres, Pequim, Paris e em outras mais. A lista de lugares que sofrem com o crime organizado é quase interminável, porém ainda existe esperança. O que Os Intocáveis deixa bem claro é que o sistema é realmente corrupto, mas isso não impede que a sociedade e seus representantes honestos lutem a todo custo para extirpar essas doenças do nosso cotidiano.

Não aceitar o domínio de milícias, máfias, políticos corruptos e outros que destroem a moral e as bases da família e da sociedade é o primeiro passo para evitar que suas zonas de influência se ampliem e dominem – pelo medo ou por dinheiro – o que nos resta de justiça.

Qualidade técnica do filme.

Tudo colaborou para transformar Os Intocáveis em uma obra-prima. As atuações consistentes do elenco principal, a direção precisa de Brian de Palma, uma bela fotografia, câmeras móveis e tomadas precisas, a trilha sonara de Ennio Morricone, o roteiro de David Mamet… o que mais dizer?

Trinta e um anos após seu lançamento, o filme continua impactante. Algumas de suas cenas estão imortalizadas no cinema, com destaque para o tiroteio na escada da estação, uma passagem do filme que uniu com maestria a tensão, trilha sonora, paleta de cores, interpretações e os vários ângulos de câmera. É impossível não sentir a crueza da cena que envolve Eliot Ness e George Stone (Andy Garcia).

No elenco estão, além dos citados, Billy Drago (Frank Nitti), Patricia Clarkson (Catherine Ness), Richard Bradford (Chefe de polícia Mike Dorsett), Brad Sullivan (George) e Anthony Mockus Sr. (Juiz), entre outros.

Uma obra para ser vista incontáveis vezes, cuja qualidade técnica, roteiro, elenco e direção a colocam ao lado do excepcional O Poderoso Chefão.

 

 

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