Social Comics – A luta contra Canudos. HQ para que a História não seja esquecida.

Antônio Vicente Mendes Maciel ou apenas Antônio Conselheiro é uma das mais complexas figuras históricas do Brasil. Sua influência no sertão nordestino chegou ao ponto de o taxarem de “profeta”. Multidões o seguiam e isso incomodou os detentores do poder à época: latifundiários, o governo, fazendeiros e comerciantes. Ele atuou no final do século XIX, no sertão da Bahia, e era conhecido como um pregador da palavra de Jesus, apesar da desaprovação da Igreja.

Uma parte bem interessante da vida dessa figura história está contada na HQ “A Luta de Canudos”, escrita por Daniel Esteves e ilustrada por Jozz e Akira Sanoki. A graphic novel foi publicada em 2014 pela editora Nemo e agora está disponível em formato digital pela Social Comics.

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. (Euclides da Cunha)

Desde 1874 que a figura de Conselheiro causa furor e repulsa. Os mais abastados o temiam, enquanto os menos favorecidos viam nele uma figura de esperança. Eis a descrição do profeta pelo periódico O Rabudo, publicada no dia 22 de novembro de 1874:

Há seis meses que por todo o centro desta Província e da Província da Bahia, chegado (diz ele) do Ceará, infesta um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares. O que, a vista dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o trate por S. Antônio dos Mares. Esse misterioso personagem, trajando uma enorme camisa azul que lhe serve de hábito a forma do de sacerdote, pessimamente suja, cabelos mui espessos e sebosos entre os quais se vê claramente uma espantosa multidão de bichos (piolhos). Distingue-se pelo ar misterioso, olhos baços, tez desbotada e de pés nus; o que tudo concorre para o tornar a figura mais degradante do mundo.

Outro extrato do Diário da Bahia de 29 de junho de 1876 diz o seguinte (extrato com a grafia da época e mantidos alguns erros de datilografia):

“Antonio Conselheiro – conhecido com este nome, appareceu em nosso sertão do norte, ha cerca de dous annos, um individuo, que se diz chamar Antonio Maciel, e que nos logares onde tem se apresentado ha exercido grande influencia no espirito das classe populares, servindo-se para isso de seu exterior mysterioso, e costumes asceticos com que impõe á ignorancia e simplicidade de nossos camponezes.

Deixou crescer a barba e os cabellos, veste uma tunica de azulão bem pouco asseiada e alimenta-se muito tenuemente, sendo quasi uma mumia.

Acompanhado de duas mulheres, que diz serem duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a prégar e dar conselhos ás multidões, que reune-se onde lhe permittem os parochos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser um homem intelligente, mas sem cultura.

Com estas armas só, tem conduzido o auditorio a actos de selvageria, obrigando as mulheres a cortarem os cabellos, queimarem os chales e até as botinas, como objetos de luxo condemnados pela religião, tambem ha reedificado templos, como aconteceu com a capella da Raìnha dos Anjos, no Itapicurú, e construido diversos cemiterios.

Esse mysterioso, que dizem viera do Ceará, e tem percorrido o nosso centro, acaba de ser preso pelo delegado de policio do Itapicurú, e é aqui sperado nestes dias, pois fei uma escolta para conduzi-lo. Teve do delegado de policia ordem de prisão em nome do chefe de policia, e d’onde se achava veio por si acompanhado do povo, que ouve e attende, recolher-se á prisão, e se achava na cadêa do Itapicurú, onde pelo delegado foi posto incommunicavel.

Se Antonio Conselheiro não é um grande hypocrita, que, sob suas humildes apparencias, occulta algum tartufo de nova especie, não passa de um fanatico. Será um criminoso? Dir-nos-ha a policia, que ordenou sua captura.”

Essas são algumas das notícias da época em que Antônio Conselheiro se tornou um ícone e uma ponta de esperança para os esquecidos. Ao misturar a fé com um pseudo-socialismo, ele ganhou ares de messias, pois em um lugar onde os pobres eram tratados como fonte de impostos e mão-de-obra, Conselheiro surge como um enviado de Deus, capaz de advogar e proteger os menos favorecidos. Aliás, o Arraial de Belo Monte deu abrigo para negros recém-libertos, indígenas e os sertanejos que eram explorados de todas as formas possíveis.

Na região de Canudos, ele e alguns seguidores conseguiram criar o povoado de Belo Monte. O povoado era autossustentável com plantações, escola e até uma igreja. Os bens obtidos eram partilhados de forma igual a todos, o que garantiu ainda mais adesões ao grupo, além de uma dedicação ao “profeta” que beirou o fanatismo. Entretanto, apesar do uso das palavras profeta e fanatismo, há de se reconhecer que a iniciativa deu certo e trouxe bons frutos aos que eram moradores de Belo Monte. Lá havia muito mais justiça aos desprovidos do que em toda a República.

Os interesses do governo e da Igreja eram mais importantes para os líderes dessas instituições. Ter alguém que desafiasse tais poderes e nada fazer para afrontá-lo era uma confissão de fraqueza. Assim, várias tentativas de invasão a Belo Monte foram feitas, sempre com o sucesso do lado dos seguidores de Antônio Conselheiro. Em uma desses ataques, para demonstrar destemor, os rebeldes seguidores de Conselheiro esquartejam os soldados e expõem a cabeça de seu líder, o Coronel Antônio Moreira César, militar conhecido pela alcunha de Corta-Cabeças.

Mais tarde, por ocasião da última invasão a Canudos, morre o Bom Pastor, Antônio Conselheiro. O líder da incursão militar decide decapitá-lo para que ficasse como exemplo do que aconteceria a qualquer um que fosse contra a República e as instituições legais.

Mais do que quadrinhos.

Essa edição da editora Nemo tem muitos predicados. Entre eles estão: a coragem de retratar um fato histórico por meio de uma HQ, a recriação de cenas de guerra extremamente violentas, a abordagem de temas como fanatismo, religião, a perseguição aos pobres, cobrança abusiva de impostos e, sobretudo, a luta do poder instituído contra o poder paralelo (porém ainda legítimo em função daqueles que o acataram). A luta em Canudos é singular e muito fiel ao fato histórico em si, ainda que haja alguma liberdade poética em sua estrutura.

Muito além de uma HQ voltada para o entretenimento, essa obra da Nemo tem o poder de destacar que latifundiários, comerciantes e, principalmente, o governo recém instaurado da República perdiam com o êxodo dos sertanejos e dos negros ex-escravos. Perdiam de que forma? Principalmente com a remoção de mão-de-obra, mas havia uma desmoralização dos poderes instituídos quando Conselheiro e seus seguidores os desafiavam publicamente.

Também é importante frisar que os alicerces morais da República, do Exército e da Igreja ficaram abalados pela resistência do povoado de Belo Monte, mas isso não justifica a invasão de um lugar autossustentável, repleto de idosos e crianças, valendo-se de recursos como canhões e tropas treinadas. Milhares de pessoas morreram de ambos os lados da guerra.

Arte, colorização e roteiro.

O roteiro dessa obra foi escrito por Wanderson de Souza, tendo como base relatos históricos. A arte e cores são William Shakespeare e Lillo Parra.

As cenas apresentadas – desde as mais simples até as complexas representações da guerra – foram feitas com extremo cuidado. Cores fortes marcam as cenas no sertão e o drama é a característica mais comum às imagens de combate. Cada página é um incentivo à continuidade da leitura e, certamente, servirá como motivação à contínua busca por mais conteúdo sobre esse período tão conturbado de nossa história, algo indispensável para que possamos aprender com o passado a fim de evitar os mesmos erros hoje e no futuro


Outras fontes sobre a Guerra de Canudos.

Além dos quadrinhos publicados pela editora Nemo, é possível ter acesso a mais conteúdo sobre a luta entre sertanejos e poderes legais por meio do livro Os Sertões (Campanha de Canudos), obra de Euclides da Cunha. O autor é citado na HQ e esteve realmente presente no acampamento dos soldados e durante as quatro campanhas do exército contra os integrantes da comunidade de Antônio Conselheiro. A obra-prima de Euclides da Cunha é considerada um marco histórico e literário, indissociável dos fatos que englobam a Guerra de Canudos.


Os anos de 1896 e 1897 também estão recriados no filme nacional A Guerra de Canudos, cujo elenco tem nomes como: José Wilker, Cláudia Abreu, Paulo Betti, Marieta Severo, Selton Mello, José de Abreu, Tuca Andrada, Tonico Pereira, Roberto Bomtempo, Dandara Guerra, Dody Só, Eliezer de Almeida, Denise Weinberg, Jorge Neves e Edinaldo Pereira.


Por fim, O Rappa fez um clip chamado Súplica Cearense onde uma parte do massacre em Canudos é retratada em stop motion. Assistam ao clipe logo abaixo:

Ter acesso à plataforma do Social Comics é um grande presente para mim, principalmente por ter permitido a leitura de uma obra desse porte. Parabéns aos autores e a Editora Nemo pela coragem de publicar algo tão forte. Tenho certeza que alguns segmentos da sociedade querem esquecer esse episódio da história… mas não conseguirão!

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