Bone: o Vale ou Equinócio Vernal. Resenha da obra máxima de Jeff Smith.

Jeff Smith e a série Bone são lendas no mundo dos quadrinhos. Publicada em 55 edições originalmente, entre os anos de 1991 e 2004, as histórias dos primos Fone Bone, Phoney Bone e Smiley Bone receberam diversos prêmios (entre eles 10 Eisner) e o reconhecimento de uma legião de fãs. Infelizmente as HQ ficaram sem uma edição colorida e à altura da magnitude da obra durante muito tempo no Brasil, fato que foi corrigido no ano passado pela editora Todavia.

De forma corajosa e respeitosa, a Todavia optou por publicar em três volumes a trama na íntegra de Bone, agora colorizada e com um acabamento impecável. A primeira edição recebeu o título de “Bone: o Vale ou Equinócio Vernal“, impressa em papel couchê, capa e contra-capa com orelhas, além de imagens das 20 capas das edições originais que englobam o período de julho de 1991 a outubro de 1995, mais um texto onde o próprio Jeff conta a trajetória de sua criação mais famosa até o projeto de colorização influenciado por ninguém menos que Art Spiegelman.

Antes de iniciar a análise dessa linda edição, preciso destacar que a Todavia fez uma promoção imperdível para os fãs de Jeff Smith e também para os que em breve se tornarão (não tenho dúvida): na compra da edição número 1 (O Vale ou Equinócio Vernal) ou da edição número 2 (Phoney contra-ataca ou Solstício), além do desconto de 20% houve a possibilidade de ganhar uma das três artes exclusivas de Jeff Smith. Válido apenas para quem realizou a compra até o dia 4 de abril.

Afinal, qual a trama de Bone?

Antes de tudo, peço que não julguem a história por seus desenhos. Mesmo tendo um aspecto infantil (cartunizado) e uma trama leve inicialmente, Bone é uma aventura repleta de mistério, humor, ação e outros elementos que estão presentes em obras como Game of Thrones e O Senhor dos Anéis… sem exageros.

Com uma narrativa dinâmica, extremamente bem elaborada e capaz de cativar desde a criança que já lê até o idoso que nunca pegou uma graphic novel nas mãos, Bone é uma obra-prima que tem o dom de manter o leitor fixo em suas tramas do início ao fim. Isto ganha em magnitude quando me refiro à versão colorida, pois ela deu mais profundidade ao traço de Jeff e ampliou o alcance da história em si. Art Spiegelman estava certo quando disse que essa HQ não poderia ficar em preto & branco, ao contrário de Maus.

Obs: preciso deixar bem claro que poderia ler as edições antigas para ver sequência da história, mas a Todavia conseguiu brindar o leitor brasileiro com uma obra linda e capaz de incentivá-lo a aguardar a sequência. Aconselho-os a fazer o mesmo e aguardar pela última edição (a 2ª já está à venda).

Agora, vou explicar o que é Bone.

A história narra as aventuras de três primos chamados Fone, Phoney e Smiley (todos com o sobrenome Bone), moradores que foram expulsos da cidadezinha chamada Boneville. Os primos têm uma aparência que remete a uma mistura do Gasparzinho com os antigos Gloop e Gleep de Os Herculóides (somem a isso uma “napa” como a do Capitão Caverna), além de personalidades distintas, mas que se complementam, tal como acontece na maioria das famílias. Há outras referências e é legal pesquisar sobre elas para ver o quanto é complexo o processo de criação de uma personagem.

Perdidos e sem muitas esperanças, o trio presencia um fenômeno sobrenatural que acaba por colocá-los em rumos diferentes. Fone Bone se depara com Ted, um inseto muito esperto, que lhe indica a ajuda de Espinho para que ele possa voltar a Boneville. Nesse intervalo, Bone se depara com uma dupla de ratazanas gigantes (e estúpidas) que o querem para o almoço, além de outro elemento importantíssimo para a trama, um grande dragão laranja (que é chamado de dragão vermelho).

Aos poucos somos apresentados a novas personagens que dão mais dinâmica à trama, incluindo a Vovó (cujo nome real é citado apenas mais tarde), aldeões, uma família de gambás, Lucius, mais ratazanas e um indivíduo maligno e poderoso que procura por um dos Bones. Todos esses elementos são inseridos na obra de forma lúcida, coerente e dinâmica. Nesse primeiro livro da Todavia, fica fácil perceber que Jeff Smith levou muito tempo e teve um trabalho imenso para manter as pontas de uma história tão interessante e longeva.

O que começa de forma simples, ilustrado com traços até comuns (e mesmo assim sempre competente), ganha vulto e se transforma em uma narrativa forte, cheia de mistérios e reviravoltas. Passados são revelados gradualmente e isso ajuda a aumentar a empatia com cada um dos personagens principais. Chegamos a um ponto em que esquecemos ou abstraímos que há animais falantes, dragões, monstros e outras criaturas fantásticas, fato que só acontece por conta dos diálogos intensos, inteligentes e também por causa da lindíssima narrativa gráfica. Os Bones têm o desejo de retornar a Boneville, mas estão dispostos a ajudar seus novos amigos a combater um mal que espreita e planeja.

Desta forma, Jeff Smith mostra que sua mais longeva obra é tão competente e interessante quanto outras obras-primas da literatura e quadrinhos. Não à toa, Bone recebeu 10 prêmios Eisner e 11 Harvey Awards ao longo dos seus 13 anos de publicação até que a saga fosse concluída. Fãs da literatura e da Nona Arte incluem Bone no mesmo patamar que Senhor dos Anéis, Game of Thrones, Cavaleiro das Trevas, Maus, Watchmen, Reino do Amanhã, Sin City e outras grandes produções da cultura pop mundial. O diferencial de Bone é que a graphic novel pode ser lida por pessoas de todas as idades sem exceção, pois não há uma faixa etária ou gênero especificados pelo conteúdo. Assim como todos livros e quadrinhos acima citados, a obra máxima de Jeff Smith é atemporal e terá uma vida tão longa quanto os livros de Tolkien, tenho certeza.

A História por trás da história.

Muitas matérias já citaram isso, mas não custa frisar. Jeff Smith era sócio em uma empresa de animação. Ele conhecia quadrinhos (principalmente os mais comuns), mas nutria uma admiração por obras do porte de Love & Rockets e Cerebus. Apesar de ter estabilidade no que fazia, Jeff almejava algo que muitos considerariam loucura: publicar como quadrinista underground.

Com o apoio de sua esposa, Vijaya, ele iniciou a maior aventura de sua vida (e das nossas também) ao publicar de forma independente Bone. O ano é o longínquo 1991 e essa trama se estendeu até 2004. Sucesso em todos os planos possíveis, Jeff Smith e sua editora Cartoon Books seguem com outras obras, mas sempre tendo à frente as histórias dos primos de Boneville e seus amigos.

Um detalhe faltava nessa vitoriosa narrativa: Bone estava apenas em Preto e Branco. Jeff (e os leitores) não se importavam muito com isso, pois outras obras de peso como Maus eram em P & B. O que ninguém esperava era que o próprio Art Spiegelman fosse o influenciador capaz de convencer Jeff a publicar seu “filho” em cores. Jeff questionou Art sobre esse assunto, mostrando resistência a modificar seu projeto original, ao passo que a resposta do criador de Maus foi a seguinte: “Maus trata da guerra e do holocausto, tinha que ser em preto e branco. Mas Bone trata da vida, e não estará terminada até estar colorida.”

O resultado disso está sendo publicado finalmente no Brasil em três volumes que comporão a totalidade das histórias dos habitantes de Boneville e todos os outros personagens. Outras tentativas de publicar Bone na íntegra (mesmo em preto e branco) não obtiveram sucesso, mas eu tenho certeza absoluta que essa versão da Todavia já é um estrondoso sucesso. Nós, leitores brasileiros, merecemos esse presente.

Cores mudaram algo da trama?

Essa é uma questão fácil de surgir na mente dos leitores. Provavelmente a simples inserção de cores (chapadas) não resultaria em algo capaz de modificar a impressão visual do leitor, mas em Bone o resultado foi absolutamente deslumbrante. Há cenas que simplesmente ganharam mais vida com a colorização competente de Steve Hamaker (que também atuou com Smith em Shazam e a Sociedade dos Monstros).

Ao vermos a neve, o sol, matos, carroças, animais, monstros e dragões com cores vivas e perfeitamente encaixadas aos desenhos de Jeff, percebemos que a opinião de Spiegelman estava corretíssima. Meu filho me disse (ao ver o comparativo abaixo) que ele ficou muito melhor colorido, por dar mais vida e emoção à HQ.

Personagens.

Fone Bone – é um amigável e prestativo Bone. Ele faz amizade com facilidade, é honesto e responsável. Sua índole inocente se torna divertida quando se depara com a linda Espinho.

Espinho – é uma simples e linda garota. Espinho mora com a Vovó e a ajuda em tudo que for possível. Elas têm muito mais em comum do que aparentam, inclusive um passado sombrio.

Smiley Bone – um Bone tão idiota quanto o Pateta de Walt Disney. É um indivíduo trabalhador e amigo, mas perde pontos ao se unir a Phoney em algumas tramoias.

Phoney Bone – avarento, malicioso, preguiçoso… e misterioso. Phoney é uma versão sovina e aproveitadora do memorável Sr. Scrooge. Ele é uma crítica aos políticos que se valem da fé do povo para enriquecer ilicitamente. Seu passado está ligado a um dos vilões da série.

Ted – um besouro que parece conhecer bem do passado da Espinho e do que acontece no Vale. É também amigo do Dragão.

Dragão – com sua cor alaranjada, ele se destaca pelas orelhas com “pompons” e a presença constante de um charuto. É um dos elementos importantes da trama e está vinculado ao presente e ao passado de muitas personagens.

Vovó – seu passado é também um mistério, mas ela prefere manter sua vida na tranquilidade em que está. Infelizmente (ou felizmente), a chegada dos Bones traz uma reviravolta que mudará muitas vidas.

As ratazanas – uma enorme ninhada deles está sempre por perto. Jeff Smith deu destaque a duas delas que servem como espiões e uma das divertidas partes da história. Mesmo com uma malignidade latente, é impossível não rir de suas discussões e burradas.

Kingdok – O líder das ratazanas. Seu aparente poder diante das demais ratazanas é controlado quando diante do misterioso Senhor dos Gafanhotos. Kingdok é um líder controlado diante de seus comandados, algo que pode gerar desconforto e pensamentos de traição.

Senhor dos Gafanhotos – misterioso, sempre envolto em um manto e com o rosto escondido por capuz. Os balões para mostrar suas falas são trêmulos e remetem a algo doente, pútrido. Ele tem uma obstinação por Phoney Bone.

Lucius – o dono do Barrico Doce, a taverna mais frequentada do Vale. Lucius é a pedra no sapato de Phoney e está sempre em conflito com este. De caráter e compleições físicas fortes, ele tem uma “queda” pela Vovó.

Sequências e outras histórias da turma.

Em 2016, através da editora Crossroad Press, Jeff lançou uma sequência em comemoração aos 25 de Bone. A graphic novel recebeu o nome de Bone: Coda. A revista conta com a aventura dos Bones para retornar a Boneville e também inclui The Bone Companion (a história completa da origem e sucesso da carreira de Jeff e sua obra máxima), escrito por Stephen Weiner e ilustrado pelo próprio Jeff Smith pela primeira vez.


Bone: Handbook – Este é o melhor manual para todos os fãs de BONE, publicado pela Scholastic. Inclui perfis de personagens, uma linha de tempo de eventos, entrevistas com o criador Jeff Smith e o colorista Steve Hamaker, uma vitrine de capas das edições originais da BONE, um olhar de bastidores sobre como as edições da Scholastic foram coloridas e outras coisas divertidas!

Para complementar a leitura das histórias envolvendo os Bones, temos dois prequels. O primeiro aborda o passado da Vovó (escrito por Jeff Smith e ilustrado por Charles Vess). O segundo é uma história narrada por Smiley para um grupo de escoteiros onde a criação de Bonevile e o passado de seu fundador são revelados. As duas edições são em língua inglesa e estão disponíveis pela Scholastic.

Por fim, três edições contam as aventuras de Tom Elm, de 12 anos, um simplório agricultor do Vale. Apesar dessa simplicidade, ele sempre se sentiu destinado a algo maior. Então, quando ele descobre que todos em sua aldeia estão adormecidos e atormentados por pesadelos, ele monta um bando de heróis improváveis. Eles devem lutar para preservar a Faísca – uma luz divina nascida no centro de um vasto e escuro nada chamado Nacht. A Nacht está tentando permear o Waking World (mundo desperto) com os pesadelos do Sonho, e é a missão de Tom derrotar o Nacht e seu mais leal seguidor, o policial. Se ele falhar, sua família – e todos – podem nunca mais acordar. O título em inglês dessa trilogia é Quest for the Spark.

Considerações finais.

A união de um roteiro impecável, trama cativante e ilustrações lindas, detalhadas e inesquecíveis são ingredientes para transformar Bone em uma HQ de altíssimo nível. Isso, entretanto, não é a totalidade da obra. Jeff Smith criou personagens fortes, engraçadas, diferentes e com traços que oscilam entre o cartunesco e algo próximo à realidade. Seus desenhos são detalhados quando precisam ser e, em contrapartida, simples quando a narrativa assim o pede. Esse nível de esforço para criar uma graphic novel não é visto tão comumente, o que fica nítido quando vislumbramos a quantidade de prêmios recebidos por Bone.

Eu não conhecia a obra (apenas ouvi sobre ela) e fui cativado pelo texto fluente, a coerência inserida nos diálogos e também pelo humor presente que nunca é utilizado com exagero.

Hoje, sou um fã e admirador de Bone. Agradeço à editora Todavia pela oportunidade de termos finalmente a obra completa. Deixo aqui, além dos meus agradecimentos, o pedido para que a editora um dia possa publicar a totalidade dessa trama em um volume único com capa dura e tudo aquilo que nós, colecionadores, amamos.

Será que seria demais pedir que lançassem os prequels e as demais obras de Jeff aqui no Brasil? Não custa perguntar…

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