Deuses Americanos, de Neil Gaiman. Novos tempos, novos mitos.

 Odin ouve a cabeça morta de Mimir. 

Deuses Americanos (American Gods) é um livro que já está incluso na categoria “cult”. Sua influência e sucesso, frutos da prodigiosa imaginação de Neil Gaiman, renderam ótimos frutos, incluindo uma série de TV homônima. Mas o que está por trás desse sucesso? Quais os elementos que deram a essa obra moderna o status de best-seller (sem o sentido de obra popular – e por vezes rasa – da expressão)?

Primeiro, o livro é um achado em matéria de narrativa. A leitura flui com uma facilidade absurda, cativante e dá ao leitor as motivações para continuar na jornada. Segundo, estamos falando de Neil Gaiman e sua obra, um escritor consagrado para obras do porte de Sandman, O livro do cemitério, Os filhos de Anansi, O oceano no fim do caminho, Stardust e tantas outras, além de ter o dom de dar novo fôlego às fábulas e mitos antigos. Neil é um escritor que dá ao leitor aquilo que ele ama, sempre se valendo do próprio amor por sua profissão de escritor. Por último, o livro é um incentivo (e um tributo) às histórias de seres que foram esquecidos ou esmaecidos pelo passar do tempo e pela chegada dos novos tempos.

Entre deuses.

Shadow é o personagem principal do livro. Sua personalidade é calma e serena, contrariando as expectativas por causa de seu tamanho. Grande e forte, todos esperam dele a violência que sua força poderia atrelar à índole, mas Shadow não é dado a mostrar força, exceto em caso de extrema necessidade.

Ele não sabe, porém tudo (absolutamente tudo) em sua vida irá mudar. Antes, vamos nos estabelecer no tempo e descobrir um pouco mais sobre o protagonista.

Shadow é um presidiário. Casado, ele trabalha e lê para passar o tempo na cadeia. É um preso exemplar, incapaz de arrumar problemas. Alguns até poderiam ficar tentados a provocá-lo, fato que logo se dissipa em função de seu tamanho.

Na cadeia ele mantém contato com sua esposa e sabe que muito em breve irá revê-la, já que restam poucos dias até que receba a tão sonhada liberdade. Seu companheiro de cela mostra felicidade pela saída de Shadow. Essa saída, contudo, é antecipada. O diretor relata pessoalmente a ele que sua saída ocorrerá mais cedo. E eis que o que poderia ser uma benção se transforma em maldição. Shadow sairá antes para poder presenciar o funeral de sua esposa.

E o caos realmente começa…

Na viagem para a cidade onde ele e Laura moravam, um homem misterioso surge para fazer uma proposta de emprego ao ex-presidiário. O fato de receber tal proposta não é o mais estranho. O que realmente impressiona é a ciência por parte do homem de que ele é um ex-preso. E isso fica ainda mais estranho quando o homem sugere que Laura o traiu. Em prol de uma viagem tranquila, Shadow desconsidera o comentário e dispensa o homem que o perturba.

Ao chegar ao aeroporto, uma nova notícia ruim. 

As notícias ruins poderiam terminar por aí, mas há algo mais. Laura, sua esposa, morreu e há indícios de traição por parte dela com o melhor amigo de Shadow. Essa poderia ser a pior parte da história, não fosse a persistente presença de Wednesday. Sem opções, família, dinheiro e lugar para ficar, resta a ele aceitar o convite de Wednesday e partir em uma busca que será repleta de fenômenos estranhíssimos.

E nós pensávamos que as notícias ruins acabaram…

Não há mal que sempre dure. Isso é um fato, assim como certos males podem ser rápidos e muito dolorosos. Sem a esposa, desempregado e sem ambiente onde morava, resta a ele trabalhar para Wednesday. O misterioso empregador impõe algumas condições bem estranhas, aceitas sem maiores reclamações. Afinal, o que resta para ele senão trabalhar para esquecer as recentes derrotas?

A estranha dupla parte por uma jornada pelos EUA em uma verdadeira “road trip”. Eles precisarão de muita paciência e parceria para se conhecerem e, sobretudo, sobreviverem ao que os aguarda pelas estradas norte-americanas.

Leprechauns, vírus e deuses adormecidos.

Caso ainda não esteja bem claro, Deuses Americanos retrata com maestria um fictício mundo onde os deuses vivem – literalmente – entre nós, ainda que com muito menos pompa que o esperado. A bem da verdade, alguns existem em condições muito ruins, enquanto outros nutrem seus poderes por intermédio de sacrifícios. Há uma sociedade de seres esquecidos pelo homem, cujas vidas são muito semelhantes às nossas: alguns desfrutam de riquezas, outros são alcoólatras ou mendigos ou até mesmo donas de casa. Visualmente são normais, o que não quer dizer que ainda não tenham seus poderes ancestrais.

Interligação de livros.

Neil Gaiman ganhou notoriedade por ser um grande contador de histórias. Desde Sandman que suas palavras ganharam poder e credibilidade. Hoje, suas obras são bem extensas e possuidoras de uma legião de fãs. Essa credibilidade é fruto de uma escrita muito fluente e de histórias construídas com coerência e pesquisa. Quer uma pequena comprovação? Então, saiba que Deuses Americanos está atrelado a outros dois livros do autor. Um diretamente, Os Filhos de Anansi, cujo enredo conta como foi o fim da vida do deus Aranha e a vida complexa de seus dois filhos. O outro livro está relacionado indiretamente, porém é de vital importância para ampliar a compreensão de Deuses Americanos: Mitologia Nórdica. A obra relata algumas das histórias por trás dos deuses nórdicos (Loki, Odin, Thor, Sif, Mimir) e clareia várias passagens do livro agora abordado.

Caso queira ter uma clara ideia do que se trata o livro Mitologia Nórdica, também publicado pela Intrínseca, assim como Os Filhos de Anansi, basta acessar https://noset.com.br/resenha-de-mitologia-nordica-deuses-e-licoes-que-nao-podem-ser-esquecidos/, também analisado por mim.

Descrevendo os deuses.

Um ponto muito interessante nessa história é a alocação de divindades das mais variadas espécies e origens em um mesmo lugar, os Estados Unidos. Essa reunião de seres mitológicos ganha força com a descrição de suas aparências e comportamentos nos dias atuais. Há um deus, Czernobog, que sempre se nutriu do sangue de vítimas sacrificadas em seu nome e, hoje em dia, seu martelo se nutre do sangue de bois sacrificados em um matadouro. Ele, nesse matadouro, é o responsável por martelar as cabeças e tirar as vidas dos bovinos. Mad Sweeney é outro estranho ser mitológico, uma divindade menor, um leprechaun. Tal como nas lendas irlandesas, ele tem o poder de tirar ouro do ar, magicamente, porém não tem nada de baixinho. Também tem o dom de ingerir bebida alcoólica como se fosse água. Ele e Shadow protagonizam uma ótima cena de luta que é vital para a trama.

Não nos esqueçamos dos deuses atuais, os midiáticos. Seres criados por nossa idolatria cega à tecnologia, seja ela através de TV, smartphones ou computadores. A tecnologia é o nosso vício e nosso bálsamo diante das adversidades do dia dia. Ela nos conecta, entretém e, sobretudo, escraviza. Assim, fruto do ócio e da preguiça, a população do mundo emburrece, engorda e se distancia do que é importante para se aproximar do virtual. As telas substituíram os abraços e o prazer de uma conversa frente a frente. Logo, o que esperar de um deus criado pela tecnologia que não seja um indivíduo gordo e perigoso. Ele, entretanto, é a ponta do iceberg. É a Mídia a mais perigosa da nova geração. Sua astúcia só faz contraponto com a frieza que tem.

E há outros tão interessantes e importantes. Descubram cada um e ergam seus altares e façam a libação em honra a essas divindades.

Ora pro nobis. Pray for us. Rezem por nós.

“Eu sou a caixa dos idiotas. Sou a TV. Eu sou o olho que vê tudo e sou o mundo do raio catódico. Eu sou o tubo dos tolos… o pequeno altar na frente do qual a família se reúne para adorar.”

As palavras acima fazem referência ao grau de dependência que a humanidade dita “evoluída” tem com relação à TV e tecnologia. Hoje, horas são desperdiçadas frente às telas, quase sempre em prol de algo fútil. O potencial destrutivo das mídias audiovisuais é inimaginável e isso está perfeitamente demonstrado em Deuses Americanos. A Media (Mídia) precisa de nossas oferendas diante dela. E essas oferendas são nada além de nossa presença diante dela, do tempo que dispendemos em prol da distração. Estar diante da TV, do smartphone, do tablet ou outra tela com conteúdo midiático é uma forma de sacrifício, pois entregamos o que temos de mais precioso – nosso tempo – em troca de diversão.

Mas o que mais me surpreendeu foi o diálogo onde a Media revela que os novos tempos pedem novos deuses. Assim, caso um “deus” da mídia audiovisual perca sua popularidade, ele será substituído rapidamente para que os espectadores (adoradores) se mantenham cativos e dependentes dos programas e vídeos. Inteligentíssimo!

Media e o garoto-tecnológico são frutos de nossa dependência pela tecnologia, por nosso amor à conexão e nosso consentimento às manipulações a que somos submetidos. Isso fica bem expresso nessa tirinha de Calvin & Haroldo:

Outros deuses e suas necessidades.

Essa é uma abordagem bem corajosa no livro: as necessidades dos deuses. Czenorbog precisa do prazer de matar para que uma parcela de seu antigo poder se faça presente. Uma deusa antiquíssima se mantém viva ao custo de adoração vinda de seus clientes, já que ela atua como prostituta. Divinos ou terrentos, Deuses Americanos faz questão de evidenciar que até deuses possuem necessidades e dependências muito próximas a nós.

Suprir as necessidades de tempos antigos, agora adaptados para nosso tempo, é a garantia de vida… ao menos enquanto houver com o que suprir as lacunas do corpo.  O que era apenas espiritual, na maioria dos casos, ganha necessidades bem materiais quando assume a forma humana. No geral, os deuses antigos e modernos precisam de adoração, seja ela em pequena ou grande dose. O que importa é haver quem os louve, já que isso evita que eles caiam no esquecimento e, consequentemente, morram.

Mitologias.

Gaiman é genial quando o assunto é misturar a realidade dos tempos atuais com seres mitológicos. Os velhos deuses são transformados em seres humanos dotados de tantas falhas quanto qualquer humano comum. Há os que são providos de decência e os que não possuem escrúpulos. Tal como nós humanos, os deuses são ricos por terem as falhas comportamentais que marcam nossa raça. Mesmo providos de poder e inteligências inimagináveis, eles cedem com tanta facilidade quanto nós diante dos seus “vícios”.

Em Deuses Americanos, Neil captou de forma impressionante seres oriundos do folclore africano, alemão, nórdico e de tantas outras civilizações. Mas sua inventividade não parou por aí. Ele também criou entidades mitológicas novas como deuses das estradas, do rádio, da TV, das ferrovias, deuses dos mais variados tipos que ganham corpo quando refletimos e contemplamos que, em algum momento de nossas vidas, admiramos e idolatramos essas coisas. Basta dizer que hoje o smartphone é praticamente um membro da família. A idolatria e a dependência a esse item tão comum em nossos tempos são assustadoras. Isso, reflitam, dá consistência ao que Neil Gaiman criou em sua mente.

Referências mil.

Ler Deuses Americanos é um incentivo à busca de outros materiais onde encontraremos aquilo que inspirou Neil em seus escritos. Vocês se depararão com as três mulheres, Mad Sweeney, Loki, deuses de variadas religiões ou cultos. Todos são muito interessantes e ganham destaque por meio da escrita do autor. Saber o “passado” de cada um dos personagens é uma ótima forma de aprofundar a leitura e compreender melhor certas passagens do livro.

Também preciso frisar que as aparência enganam. Neil Gaiman conduz o leitor e traça perfis que nem sempre são o que aparentam. Personagens possuem muito mais profundidade do que as aparências mostram (no caso, descrição dos personagens). Eu percebi que houve um estudo bem feito sobre as deidades e seres mitológicos que surgem durante a trama. Um deles, porém, se destaca ao fim da trama por causa da malignidade nele e naqueles que o apoiam. Preparem-se para ótimas e impressionantes surpresas.

Amor além da vida.

Laura é o amor de Shadow. Mesmo diante de um grande erro por parte dela, Shadow ainda mantém o amor que o levou a aguardar três anos preso. Mas a vida é cheia de contratempos e, como já dito, Laura morreu. A vida de Shadow poderia prosseguir sem a amada se não fosse por um pequeno detalhe: Mad Sweeney. Na verdade, dois detalhes, já que Mad presenteia Shadow com uma moeda por causa da paixão do ex-presidiário por truques com moedas (e também por causa de uma boa sessão de porrada entre eles).

O presente de Sweeney é um dos pontos mais importantes da história, uma vez que ele determina os destinos de Laura (post mortem) e Mad Sweenwy. Movida por amor, Laura regressa dos mortos e atravessa toda a história em auxílio ao seu quase marido. Nem a morte a impediu de guardar Shadow.

Ainda que eu caminhe no vale da sombra da Morte.

Deuses Americanos tem muito do que vimos em Sandman, inclusive mundos diferentes do nosso. Ao lado de Wednesday (e às vezes conduzido por outros deuses), Shadow transita entre narrativas estranhas, porém simplesmente cativantes. Essas subtramas são um presente à parte que incentivam o leitor a continuar, quase em transe, na senda de Shadow e demais personagens.

Alguns pontos da obra marcam pela violência. Isso, contudo, está aplicado de forma correta e não pretende ser algo gratuito. Lembro que estamos falando de deuses e divindades cujos “egos” e crenças foram alimentados por séculos às custas de sangue e lágrimas. Assim, nada mais comum do que um pouco de sacrifício por parte do leitor… vale a pena.

Edição preferida do autor.

Esse é outro ponto muito positivo do livro. Não bastasse a história inesquecível de Shadow, Laura e companhia, a Intrínseca trouxe uma edição cheia de conteúdo extra, incluindo novos capítulos que dão mais corpo à trama, entrevista com o autor e um acabamento impecável. Não é à toa que essa é a chamada edição preferida do autor. São muitas informações adicionais que reforçam uma obra já consagrada e ampliam a compreensão do leitor sobre o universo de Shadow, Wednesday, Laura e todos os outros personagens.

Há ainda um apêndice onde Shadow encontra ninguém menos que Jesus. De modo respeitoso e totalmente encaixado na proposta do livro. Esse material não existe nas edições anteriores.

Por fim, a edição preferida recebe as “Notas do Tradutor”, algo interessante por evidenciar as dificuldades e os acertos oriundos do trabalho exaustivo de quem passa para a nossa língua (com absoluto zelo e conhecimento da obra do autor) um livro do porte de Deuses Americanos. O tradutor em questão se chama Leonardo Alves.

Jogue a primeira moeda aquele que nunca se entristeceu com o fim de um livro.

Ao fechar a leitura do livro, restou uma sensação de perda e agradecimento. A perda (ou distanciamento) de personagens fortes, interessantes e capazes de manter-me ativo na leitura. O agradecimento é devido aos ótimos (e por vezes tensos) momentos ao lado de cada um desses seres criados pela mente de Neil Gaiman. Ficou na minha mente a dúvida: como seria o deus dos leitores, dos fanáticos por livros?

Assim, mesmo triste por ter acabado essa memorável leitura, partirei para a série homônima. Será muito legal ver esses amigos construídos ao longo de cada página, agora na tela da TV. Aproveitarei para fazer meu sacrifício diante do altar da grade Mídia.

Até a próxima resenha, amigos!

 

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