Crítica: Trama Fantasma | A “história de amor” de Paul Thomas Anderson

Logo depois de terminar a sessão deste filme, me lembro de pensar rapidamente em outro indicado ao Oscar desse ano, A Forma da Água (Guillermo del Toro – crítica aqui). Não que tenham alguma semelhança como obra (pois são diferentes em tudo que se possa imaginar), mas porque assim como a subversiva fábula aplicada em um, o outro segue um caminho semelhante de descaracterizar um gênero aparente – no caso aqui, um drama de romance – de maneira que desse a sensação de sermos levados a uma direção completamente inesperada, mais precisamente com a cara de seu diretor e sua característica capacidade de transformar uma certa estranheza em excelência cinematográfica. E talvez Trama Fantasma seja um dos trabalhos mais peculiares de Paul Thomas Anderson, pois ao mesmo tempo em que parece uma história diferente das outras de sua carreira, há o momento “familiar” em que somos continuamente surpreendidos pelas direções tomadas pela narrativa; é como se já o reconhecêssemos ao pensar “ok, eu já devia estar esperando algo fora do ordinário com esse cara”.

Se analisarmos a sinopse, à primeira vista, nem parece ser o caso. Na trama, Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) é um renomado estilista que trabalha para a alta sociedade britânica (inclusive, a própria realeza). Tendo a irmã Cyril (Lesley Manville) como principal companhia, ajudante e secretária pessoal, seu trabalho é o principal objetivo de sua vida, cujas regras e tradições pessoais levam a mesma rigidez com as quais cria seus famosos vestidos. Mas as coisas podem começar a mudar em sua rotina quando ele se apaixona pela garçonete Alma (Vicky Krieps), que o conquista pela sua autenticidade e inteligência.

 

Tomando emprestada a estrutura de um romance tradicional, somos apresentados a um encontro de Reynolds e Alma com alguma doçura, o que nos leva a crer que a delicadeza com a qual seu primeiro contato acontece é o que vai dar o tom do relacionamento estabelecido entre os dois (e entre o espectador também). Mas logo que o 1º ato se desenrola, sabemos que há algo de incômodo no ar. Charmosos, os modos galantes e românticos do sujeito começam a tomar um ar inusitado. Durante o primeiro jantar entre os dois, ele diz “eu gosto de ver com quem estou falando”, enquanto limpa o batom da mulher, no que era para ser um gesto terno, mas acaba soando extremamente invasivo. É uma atitude que imprime a marca obsessiva de Woodcock e que representa a sua principal marca como personagem. Contudo, essa obsessão se revela mais complicada do que aquela que envolve um relacionamento abusivo, já que a forma como canaliza seus sentimentos para o seu trabalho é o verdadeiro motivo que nos leva a questionar o tipo de relação que ele almeja ter com Alma. Aqui, o ofício é onde ele verdadeiramente vive seus anseios e segredos – ou como ele mesmo diz, os esconde costurados no bolso do paletó – e isso nos é mostrado numa cena onde a pretendente é sumariamente “ignorada” enquanto serve de manequim para um projeto do estilista, num desfecho completamente anti-romântico.

Não leva muito tempo, portanto, para que o verdadeiro personagem se revele um sujeito controlador e capaz de uma mesquinhez brutal quando sente que qualquer um de seus espaços pessoais são invadidos, por mais que esses pareçam irrelevantes para nós; desde de como se recusa a ter contato íntimo com sua parceira até como se mostra grosseiro quando alguém faz muito barulho na mesa do café da manhã. Além das representações mais aparentes, tem uma notória incapacidade de lidar com o controverso e projeta suas frustrações e perfeccionismo no vínculo entre seu trabalho e as pessoas. Para isso, basta observar, por exemplo, como toma o fato de que a fragilidade de uma de suas clientes é encarada como um insulto pessoal e assim que a julga não merecedora de um de seus vestidos, não se importa em “resgatá-lo” da maneira mais ríspida possível. A roupa, aliás, é usada no filme constantemente como uma extensão de seu personagem (o que justifica bastante a indicação ao Oscar na categoria fora a própria estética), assim, não é surpresa que seus momentos mais vulneráveis se reflitam diretamente no figurino.

 

Conduzindo com sua maestria de sempre (e assinando também como Diretor de Fotografia), Paul Thomas Anderson faz com que o romance na camada superficial vá se subvertendo num estudo da personalidade multiforme de Reynolds Woodcock. Com uma evidente tendência a sabotar seus relacionamentos (um solteirão convicto, como ele próprio diz), o homem vai revelando raízes mais profundas para seu egocentrismo e sua solidão mascarada – uma dessas com direito a seu próprio Édipo (de uma forma mais obscura do que aquela sexual). Sua trajetória, além do mais, encontra perfeita sincronia com os elementos trabalhando para a construção de um estranho sentimento de angústia e desconfiança, principalmente na excelente trilha sonora de Jonny Greenwood (guitarrista do Radiohead), que, durante várias sequências, serve como um elemento unificador da montagem, transitando entre o suave e gracioso até o dissonante ininterruptamente, costurando uma ligação emocional que auxilia bastante na fluidez (o filme também está indicado na categoria), além de ser um aspecto dominante na tensão aflitiva que vai invadindo a narrativa.

Mestre da mise-en-scène (a maneira como se organizam os elementos em cena), Anderson usa seu talento com a câmera para ilustrar não só esse incômodo no tom, mas também a lógica do relacionamento do casal e de outros personagens. Em um momento, por exemplo, o diretor mostra a dificuldade de Alma em adentrar no universo novo de seu parceiro quando faz questão de separá-la, através de um leve movimento (algo similar ao que usou em Embriagado de Amor), de Reynolds e Cyril em uma mesa de jantar. Do contrário, ao enquadrá-los como um casal, o faz em momentos onde a inquietação se faz sempre presente, como se esperássemos que algo fosse dar errado a qualquer momento – é interessante, aliás, como a inserção de um som inesperado é usado para aumentar o sentimento de desconforto por parte de Alma, seja uma cadeira sendo arrastada bruscamente ou o ruído dos talheres no silêncio da manhã. Sabendo usar a iconografia da imagem a seu favor, o elo simbólico entre a vida e o trabalho encontra formas elegantes nas mãos do experiente cineasta, como destaque para aquela em que um grupo de costureiras vestidas de branco fazem uma “cirurgia” com suas agulhas em um vestido que havia sido danificado por um momento de indisposição do personagem, remetendo novamente ao fato de que suas criações são extensões de si mesmo.

 

Mas o filme não funcionaria do mesmo modo sem Alma, já que o diretor guarda muitas de suas intenções da história na maneira como ela se comporta frente à complexa personalidade do estilista. Se inicialmente ela representa nossa própria reação de crescente consternação quanto àquele ambiente tóxico, posteriormente sua força vai aumentando e ela começa a servir como a principal fonte que rivaliza e tenta desvendar os mistérios de Woodcock. Infelizmente, vez ou outra o texto acaba externalizando desnecessariamente parte de nossa “investigação” através de diálogos que só fazem empobrecer a experiência que estávamos tendo sensorialmente (principalmente no 3º ato), mas esses momentos não tiram o brilho da obra e nem nossa curiosidade acerca da personalidade de Alma. É através dela que ele começa a revelar características que ficavam escondidas na sua rígida rotina. Sua trajetória de descobrir como conquistar o amor que ela mesmo sente por ele se torna a busca do espectador em decifrar os personagens – lembrando que aqui o termo “conquistar” encontra uma ressignificação que foge bastante do quo você esperaria de uma história de amor comum. Além disso, o roteiro encontra momentos mais sutis que dão uma pista sobre o personagem, como aquele em que uma discussão entre Cyril e Reynolds acaba denunciando bastante acerca de sua natureza.

Pois bem, a verdade é que o filme vai além de uma história sobre um casal improvável, trilhando um caminho que não tem medo de flertar com um absurdo que ultrapassaria os limites do gênero se estivesse nas mãos de outro artista. Aqui, a subversão é construída aos poucos e a história pode te conquistar pelo caráter excêntrico e pelo exercício narrativo mais do que a catarse emocional que se esperaria naturalmente.

Para a alegria dos cinéfilos, Paul Thomas Anderson continua a ser um cineasta que desafia as nossas expectativas continuamente e não parece ter desacelerado com Trama Fantasma. Se essa realmente se confirmar como a despedida de Daniel Day-Lewis, não há o que reclamar de seu ato final.

Nota:

Trailer

Data de lançamento: 22 de fevereiro de 2018 (2h 10min)

Direção: Paul Thomas Anderson

Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville, Harriet Sansom Harris, Camilla Rutherford, Brian Gleeson, Julia Davis

Sinopse: No glamour de Londres dos anos 50, o renomado costureiro Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) e sua irmã Cyril (Lesley Manville) estão no centro da moda britânica, vestindo a realeza, estrelas de cinema, herdeiros, socialites, debutantes e damas com o distinto estilo da Casa de Woodcock. Mulheres vem e vão na vida de Woodcock, entregando inspiração e companhia ao solteiro, até que ele encontra a jovem e opiniosa Alma (Vicky Krieps), que logo se torna um acessório em sua vida como sua musa e amante. Uma vez “controlado”, ele vê sua vida minuciosamente planejada ser interrompida pelo amor.

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