Crítica: O Filme da Minha Vida (2017, de Selton Mello)

Se há algo que me entristece como alguém que gosta de cinema é ver a nossa produção cinematográfica sendo muito mais reconhecida nos festivais internacionais do que pelo nosso próprio público. Basta notar que, a não ser por um círculo mais restrito de cinéfilos, o público geral pouco conhece o cinema brasileiro pós-retomada, aquele iniciado a partir dos anos 2000 e que deixou para trás os tempos negros do início da década de 1990. Sim, todos sabem sobre Cidade de Deus e Tropa de Elite, mas fora esses exemplares que conseguiram se aproximar de um formato mais familiar, os belos “dramas de festival” ficaram restritos… bem, aos festivais. Fora o óbvio problema de distribuição, a verdade é que o público quer mesmo é uma indústria que seja capaz de entregar filmes de gênero toda semana. Isso, claro, não é ruim e eu mesmo compartilho dos mesmos anseios, mas virar o rosto para a arte produzida pelos nossos cineastas de festival só nos priva dos ótimos talentos que temos por aqui.

Se há um deles que definitivamente se provou uma joia brasileira, é Selton Mello. Com uma carreira de ator já admirável, tem se mostrado, com grande consistência, ser um realizador igualmente talentoso. Após o bom Feliz Natal, dirigiu o belíssimo O Palhaço, uma tocante história sobre um artista de circo que busca reencontrar a paz interior. A habilidade em mesclar tons de comédia com uma grande sensibilidade dramática tem se tornado sua principal característica e, não com surpresa, a mantém com maestria no seu 3º longa, O Filme da Minha Vida.

Tony (Johnny Massaro) é um jovem professor natural de Remanso, na Serra Gaúcha. Retornando à cidade para reencontrar sua mãe, com a qual compartilha a falta do pai, Nicolas (Vincent Cassel), imigrante francês que abandonou a família para retornar ao seu país, passa a explorar os sentimentos conflitantes resultantes de sua relação familiar e a lidar com questões relativas às suas inabilidades juvenis. O filme é uma jornada sobre um personagem na busca de entender sua própria vida e aqueles que o cercam.

Dos três filmes da carreira de Mello como diretor, este é, definitivamente, o mais deslumbrante deles. Com uma narrativa que traz um ar de homenagem aos grandes épicos do cinema clássico, ao mesmo tempo em que imprime uma característica “sensibilidade européia”, assistir a este longa é admirar pinturas em movimento. As imagens captadas por Mello e o grande mestre da nossa cinematografia, Walter Carvalho, traduzem a beleza de uma mistura de sentimentos que nunca soa descompassada. Somos transportados a uma história que mais parece uma distante lembrança resultante de saudade, drama, comédia e, principalmente, nostalgia. Para constatar o apuro visual da produção, já seria o bastante apenas admirar os inúmeros planos onde as luzes invadem a escuridão por frestas de portas, janelas, ou até recortando a silhueta dos personagens. Contudo, nem é preciso que tenhamos informações prévias sobre aqueles personagens para que o filme consiga nos passar essas sensações, basta, por exemplo, observar como Carvalho usa uma lente com grande profundidade de campo, sem perder a definição, deixando as belas paisagens chapadas, retomando a verdadeiras pinturas na tela; do contrário, quando Tony lembra de seu pai, os vemos andando de bicicleta até que, desfocados do ambiente, entendemos perfeitamente a o sentimento de saudade e pesar do protagonista.

Mas, ao contrário do que possa parecer, esta não é uma história triste. Apesar de um dos aspectos do arco de Tony, muito bem caracterizado por Massaro com uma mescla de insegurança, sensibilidade e determinação, ser baseado em angústias relativas ao pai, não somos restritos somente à sua experiência familiar. O universo do rapaz é recheado de figuras interessantes e situações que trazem uma leveza tradicional para o enredo: a paixão entre ele e a jovem Luna (Bruna Linzmeyer) é cativante e sem pender para o melodrama maniqueísta, mesmo mantendo o charme clássico do restante da narrativa, e note que o filme não trata os sentimentos de Tony de maneira excessivamente idealizada, bastando observar que a confusão sexual em relação à irmã de Luna, Petra (Bia Arantes) é justificada pela sua visão de mundo jovial. Portanto, mesmo que torçamos pelo casal, a história tem a riqueza de reconhecer a volatilidade inerente aos sentimentos de alguém de sua idade, mantendo mais forte nossa familiaridade com os conflitos do protagonista.

Dentre outros pontos interessantes, o alívio cômico do filme que está mais presente é o que envolve o irmão de Luna, um garoto que anseia perder a virgindade em um bordel local – e, aqui, o filme não hesita em tratar a questão de maneira cômica, porém natural e até doce, como se explicasse: “estão vendo, antigamente era assim que a coisa funcionava”. Falando em bordel, a prova da sensibilidade do diretor é que algumas das sequências mais tocantes do longa se passam justamente lá. Ao invés de tratar o ambiente apenas como um reduto do sexo, os clientes e as prostitutas são personagens interessantes, que exibem uma certa sabedoria e conferem ainda mais sensibilidade ao filme, exatamente como acontece com Camélia, a personagem da sempre ótima Martha Nowill (que também está na excelente co-produção russa e brasileira Vermelho Russo, de 2017).

Adaptado pelo próprio diretor do livro Um Pai de Cinema, do chileno Antonio Skármeta (autor do celebrado O Carteiro e o Poeta e que, inclusive, faz uma pequena participação no filme), o roteiro busca explorar o sentimento de busca do protagonista através de duas frentes: o buraco deixado pelo abandono do pai quando era criança e os conflitos inerentes de um jovem com amizade, paixão e sexo. Os títulos do livro e do filme não são aleatórios e já quando vemos Tony citando a frase do pai sobre o início, o fim e a trajetória de um filme, é estabelecida a consonância entre a história do personagem e o próprio cinema. Aliás, ao constantemente citar o clássico faroeste Rio Vermelho, de 1948, Mello aproveita as semelhanças das duas histórias para solidificar o carácter de homenagem à própria arte. Entretanto, se há um ponto fraco a ser apontado, este está justamente no roteiro, quando, no 3º ato, há uma necessidade imediata de fechar subtramas na urgência de aproveitar todos os personagens secundários do filme, o que acaba tornando alguns pontos do desfecho desnecessários e artificiais.

Mas mesmo com a ressalva, O Filme da Minha Vida não perde em sua beleza cativante e na sua história sensível. O excelente design de produção, que consegue uma reprodução impressionante da época, fecha com maestria os atributos visuais do longa, tornando este um dos melhores exemplares nacionais do ano, o que só reforça as qualidades do que temos de melhor atualmente no nosso cinema, tanto no ator, no diretor e no filme.

Trailer

Nota: 

Data de Lançamento: 03 de agosto de 2017 (1h 53min)

Direção: Selton Mello

Elenco: Johnny Massaro, Vincent Cassel, Bruna Linzmeyer, Selton Mello, Bia Arantes, Ondina Clais, Martha Nowill, Rolando Boldrin

Sinopse: O jovem Tony (Johnny Massaro) decide retornar a Remanso, Serra Gaúcha, sua cidade natal. Ao chegar, ele descobre que Nicolas (Vincent Cassel), seu pai, voltou para França alegando sentir falta dos amigos e do país de origem. Tony acaba tornando-se professor, e vê-se em meio aos conflitos e inexperiências juvenis.

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