Conto: O urubu quando está azarado…

Autor: Franz Lima 

Não vou dizer o dia exato em que estes fatos ocorreram (até mesmo porque eu forcei minha mente a esquecê-los), porém posso afirmar que resta muito pouco para o Apocalipse…

Está chovendo muito. Os ônibus passam numa velocidade abaixo do normal, mas não é o suficiente para que eu me livre dos tsunamis de lama no ponto. Ô diazinho ruim!
Ainda são 16 horas e um pouquinho, porém tenho a nítida impressão que já passa das 23 horas, tamanha é a escuridão. Poderia ser bem pior, né? Pois então, alguém lá em cima ouviu meus pensamentos. Saí de casa sem um casaco ou agasalho. Capa de chuva? Só o Batman e o Superman estão autorizados a usar.
Já mais molhado que calcinha de mergulhadora, vejo finalmente meu ônibus chegar. Os vidros estão muito embaçados, o que me levou a crer que lá dentro estaria aconchegante. E estava. Claro que é preciso ressaltar que aconchego de pobre é aperto. Dentro do ônibus eu creio que havia pelo menos umas 2500 pessoas. O calor humano (e o fedor de suor também) era tanto que eu já sentia saudades do frio e da chuva lá fora. Passei longos 23 minutos sendo prensado por todo tipo de pessoa. Meus pés foram levemente esmagados e, ao sair, tive a leve impressão que, se eu fosse mulher, teria engravidado nesse passeio demoníaco.
Quebrado – quase literalmente – pela excursão no barco de Caronte, subo lentamente os degraus da escada que levam ao meu tão saudoso lar. Já estou novamente ensopado por tanta chuva. A cada dois passos que dou, recuo três. Parece que estou em uma corredeira, fruto do fato de morar em uma favela (ou melhor, uma comunidade) do Rio de Janeiro. O pior não é tentar subir a pé uma cachoeira, mas sim ter que desviar constantemente das sacolas de lixo que passam quase tão rápidas quanto um tiro de fuzil.
Então, já distraído pelo som da chuva e pelos óculos embaçados, ouço um grito que faz minha coluna vertebral cair para a temperatura exata de -3ºC: – Sai, pôrra. Sai da frente, tio.
Foi puro reflexo. Olhei e usei todo o meu conhecimento adquirido no programa “Sobrevivi” da NetGeo (via TV a gato), saltando para o lado, instantes antes de quase ter a perna decepada por uma porta de geladeira. Sim, uma porta de geladeira que era pilotada por um moleque de uns 12 anos no máximo. O filho da puta desceu montado num caco de porta, mais ligeiro que um trem, arrastando qualquer coisa em seu caminho. Ele conseguiu descer, porém não vou nem contar como ele parou uns metros à frente em um muro chapiscado de mais de dois metros de altura (confesso que fiquei por 3,5 segundos com pena do babaca).
Continuei meu longo caminho até o topo da montanha de Sauron. O foda é que eu não tinha o Um anel a destruir, apenas uma fome sobrenatural para matar. Honestamente, não aguento mais o almoço à base de sanduíche de mortadela com café ralo.
Então, após chuva, banho de lama, ônibus lotado e uma porta pilotada pelo Rubinho Barrichelo, cheguei ao Recanto do Guerreiro. Minha alegria era tão grande que estagnei diante da minha Fortaleza da Solidão. Véio, não há lugar melhor que o nosso lar.
Abri a porta e fui saudado por uma inofensiva ratazana do período Cenozóico. Logicamente que cedi passagem para aquela felpuda criatura de olhos vermelhos. Quando sua calda terminou de passar pelo beiral da porta (aproximadamente uns 2 minutos depois), fechei a porta e fui ao banheiro para trocar a calça. É triste dizer isso, mas além da água de chuva (insípida, inodora e incolor??) eu também tinha o agravante de ter urinado de medo daquele morcego sem asas. Caralho, o que mais poderia dar errado?
Entro no box (nome bonito, não?) e tiro a roupa para um relaxante banho. Meus ossos estão quase trincando por congelamento e, para balancear, só um bom banho quente. Abro o chuveiro e a água cai, morninha, trazendo um pouco de calor para quem achava que já estava morto. Tudo estava tão legal…
De repente ouço um estrondo. Que merda é essa? – penso. Será que o Capitão Marvel está na área? Sim, não havia outra explicação. O barulho de algo explodindo foi tão alto que parecia que o velho herói havia gritado “Shazam!”. Olhei para o alto do chuveiro e pensei em diminuir a temperatura, porém já era tarde. Toda a favela ficou sem luz (dias depois descobri que um transformador explodira) e lá se foi meu banho quente para a puta que o pariu.
O leitor deve estar pensando: “E daí? É só se enxugar e vestir uma roupa.” Realmente seria, caso eu não estivesse totalmente ensaboado, no escuro e sem uma peça de roupa limpa por perto. Contudo, ainda restava uma esperança. Tirei o sabão do corpo com uma água já beirando o ponto de congelamento e tateei em busca da minha toalha e adivinhem o que aconteceu. Sim, eu esqueci o maldito trapo em algum lugar.
Já beirando um AVC, saí às escuras, procurando algo para me enrolar. O frio já estava absurdamente insuportável (cara, não estou no Rio de Janeiro?) que meu simplório pinto parecia uma verruga.
Ao longo de três desagradáveis quedas, um joelho esfolado e uma infinidade de palavrões, encontro um caco de lençol para me secar. Mesmo com a hipotermia em estado avançado, sigo nas trevas para encontrar algo comestível que não fosse uma barata ou um rato.
Nota mental: casar com urgência para não sofrer mais com a ausência de alimentos prontos em casa, além de ter alguém que espante o rato antes que eu chegue do trabalho.
Decidi que ficaria enrolado no lençol velho. Não vou ficar procurando no escuro minhas roupas, até porque elas estavam espalhadas por todos os cantos do cafofo, algumas em petição de miséria.
Levo mais alguns minutos até descobrir que meu fogão ainda funciona. Acendo o fogo (duas caixas de fósforos testadas e reprovadas) e aqueço as mãos. Algumas poucas partes da casa estão iluminadas, mostrando pequenas “Faixas de Gaza”, intransitáveis e perigosas. Tento não pisar em nenhuma mina terrestre (no caso, alguns copos de requeijão e latas de cerveja) até ter em mãos uma panela com água. Resolvi ferver água e preparar uns ovos cozidos. Arroz é um luxo típico da culinária japonesa. Feijão dá gases. Com estas desculpas, resta-me degustar um delicioso ovo cozido sem sal (encharcado pelas goteiras).
Foi a partir deste ponto que a tragédia ampliou. Ouço um barulho parecido com um soluço ou um arroto. O som vinha do banheiro e me lembrava alguém querendo vomitar. Sei lá, era como se um gato tentasse tirar uma bola de pêlos da garganta.
Deixo a água aquecendo e reinicio a aventura de caminhar pela casa. No caminho encontro uma bermuda e a coloco, usando o lençol como uma toga romana. Será que o certo seria dizer toga otomana? Dane-se, o que importava era descobrir o que fazia aquele som sinistro. Havia movimento em meu banheiro e o medo foi voltando com força. Coragem, seu covarde. O que pode ter lá dentro? Um Alien? Em resposta, vejo a tampa do vaso levantar sozinha com algo vindo do interior do sanitário. Meus instintos dizem para que eu volte (já cansei de ver gente morrendo em filmes por conta da teimosia), porém a curiosidade provavelmente irá vitimar outra criatura além do gato. Pé ante pé, avanço e chego à porta do banheiro. O silêncio voltou a imperar e descobri que meu coração entregava minha localização na casa. Alguns minutos se passaram e nada mais ocorreu. Menos abalado, recuo para perto da panela com água onde os ovos estavam sendo cozidos.
Bem, pensei, desta vez parece que tudo se acertou. Vou comer meu ovinho e descansar que amanhã é mais um dia internacional de lembrete sobre a ineficiência da Lei Áurea. E é a partir de agora, leitor, que o odor de fezes ficará mais forte…
O vaso voltou a soluçar e com força. A tampa parecia ter vida e abria e fechava, indicando que a coisa iria ficar feia… e ficou.
O resto foi uma emaranhado de derrotas. Um jato de esgoto jorrou da privada para o teto e espalhou (literalmente) merda para todo lado. Com o susto, esbarrei na panela com água fervendo que virou, apagou o fogo e ainda derrubou meus ovos quase cozidos no chão já tomado pelo esgoto que não parava de avançar. Saí de casa apenas munido de bermuda, a toga e algumas leves queimaduras no braço, além do orgulho ferido. Eu tinha que resolver essa bomba antes de dormir ou ficaria acordado o resto da noite.
O retorno do esgoto tinha uma explicação lógica, eu pensei. Minha casa ficava em uma ladeira, na parte mais baixa (sim, eu não estava ainda no topo da K2) e era por lá que escoava a maior parte do esgoto do morro. Meticulosamente – seja lá o que isso signifique -, procurei a origem de mais uma derrota que me atingia naquele mesmo dia. E lá estava… na parte de trás da casa eu vi a tampa do bueiro jorrando o esgoto mais fedido que já encarei na minha vida. O que fazer?, questionei.
Vasculhei e achei uma barra de ferro. Com muito esforço (graças a Deus estava chovendo e eu não tinha cueca) levantei a tampa. Na boa, parecia um tobo-água de merda com uma velocidade que daria inveja a qualquer praticante de Bobsled. O curioso era que algo impedia a passagem total da “água”, provocando o refluxo que transformara minha casa em uma cascata de fezes. Puta merda, que mais poderia dar errado?
Com a mesma barra que usei para levantar a tampa, iniciei a exploração para encontrar o que obstruía a suave passagem daquele mar indigesto. Cutuquei ali, cutuquei lá. O suor escorria, mesmo com o frio e a chuva. Meu próprio cheiro estava dando inveja até para o Pepe le Gambá, mas era questão de honra remover aquele obstáculo do bueiro (naquele caminho tinha uma pedra)…
Mais alguns minutos se passaram e, finalmente, uma luz surgiu. Atingi algo com força e percebi que furei uma coisa qualquer. A barra travou e puxei com toda a minha força, pensando em como seria bom dormir, simplesmente dormir e esquecer que este dia existiu. Meu esforço foi coroado com a remoção de uma sacola plástica de mercado, fechada por um nó. Com a haste na mão e em sua extremidade uma bolsa empalada, me senti como se fosse o rei Leônidas, invencível e … peraí, ele morre no final da história!
Foi então que ouvi um barulho ensurdecedor, um rugido parecido com uma avalanche ou um terremoto, porém mais líquido. Era a natureza cobrando seu preço por meu destemor. Como eu removi a bolsa que obstruía e minimizava o fluxo de esgoto, a tendência foi que o jorro viesse de uma só vez e, para variar, me ferreir novamente. O fluxo foi muito mais forte e intenso do que a passagem liberada e, completamente  fodido, fui atingido por uma dose quase sólida de dejetos humanos, animais e alienígenas. Era a gota d´água naquele dia.Olhei para minha caça e para o bueiro. As águas passavam com liberdade, o que indicava que minha missão estava concluída, mas nem 8352 banhos com água de cheiro, Floratta in gold e todos os Azarros do mundo iriam remover aquela crosta de podridão. Milênios passariam e eu ainda seria reconhecido pelo odor característico de um morto que não teve asseio nem em vida.
Com o orgulho ferido, caminhei lentamente até a entrada da casa. Eu iria dormir do jeito que estava, pois amanhã seria um novo dia e, definitivamente, nada mais de ruim poderia acontecer, certo?
– João? – era alguém me chamando logo atrás de mim. – O que aconteceu?
Eu virei e me deparei com a mulher mais cobiçada do mundo. Ela também estava molhada pela chuva, sem que isso lhe tirasse o charme. Há anos eu tento namorá-la e, em retribuição, recebo somente alguns sorrisos leves e fugas apressadas. Ela nunca me amaria, porém agora eu tive a certeza de que me odiaria até a nova data estipulada pelos Maias para o fim do mundo.
– Deus do céu. Você está todo cagado e… nossa, que cheiro ruim. – ela disse, já dando indícios de que iria correr.

E é aí que encerro meu expediente. Buscando mostrar que eu fiz algo produtivo, mostrei a ela a sacola espetada pela barra. Claro, isso jamais poderia acabar bem. Quando apontei a barra com a sacola, esta se rasgou de vez. Dela, para minha surpresa e absoluto nojo por parte de Júlia (a diva), caiu uma  enorme galinha já em decomposição nos pés da mulher. Era o caos instaurado…
Júlia olhou e vomitou com mais força do que a garotinha do Exorcista. Fui golpeado no rosto por um jato sólido de vômito e, em retribuição, devolvi a gentileza para ela, vomitando tudo o que eu tinha e não tinha no estômago. Ela ficou parecida com a Carrie (a estranha) substituindo o sangue por bile e vômito. Pôrra, que dia era esse?
Ela correu como se tivesse um pitbull na sua traseira, cheio de ódio no coração. Deu pra ouvir um leve “seu filho da puta imundo”, mas nada que ofendesse mais o meu orgulho.
Assim, finalizei minha jornada. Relembro que tudo o que eu queria era apenas voltar para casa, tomar um banho e descansar. Já eram mais de 1 da manhã e eu estava podre, com fome e ensopado pela chuva. Sem contar com a vomitada e a perda em definitivo da possibilidade de pegar a garota que cobiço há anos.
Moral da história? Simples. Quando um urubu está azarado, o de baixo caga no de cima, contrariando qualquer lei da gravidade.
Ah! Por falar em lei – acima citada -, quando eu descia a favela para evitar dormir no barraco que poderia desabar (alguém duvida?), fui preso pela polícia por vadiagem. Pelo menos consegui um lugar para tomar um banho e dormir as poucas horas antes do amanhecer. Isso sem contar o café-da-manhã. Parecia que as coisas estavam voltando ao seu lugar.
Pelo menos até a próxima chuva.

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