Revivendo Clássicos – Spartacus 60 anos: como um ator ressentido, um jovem diretor, um roteirista perseguido e um trio de atores ingleses criaram um épico fantástico

Certa feita o gigante Kirk Douglas, já beirando os quase 100 anos, ao lembrar-se de Spartacus em uma entrevista disse algo assim: quando fizemos a cena da luta entre e Draba e eu, Kubrick apareceu para dirigir, eu já tinha trabalhado com ele e ele foi meu substituto perfeito, só que ele tinha uns 30 anos na época e com cara de uns 20. O time de atores ingleses do filme, Oliver, Ustinov e Laughton que assistia no set, só me cochichavam e diziam: como esse fedelho pode dirigir um épico? Eu só disse: trabalhem e veremos. E como é bom rever Spartacus, talvez o filme épico que mais  fuja dos clichês de épicos, completou em 2020 seis décadas de  vida, uma mistura de um audacioso ator e produtor, um corajoso e novato diretor, um roteirista genial que por anos foi perseguido pela famigerada lista negra do Macartismo e um dream team de atores ingleses recriando uma revolta de escravos em uma Roma pouco menos de 100 anos antes de Cristo.

O filme conta a história de Spartacus, escravo de nascença, condenado à servidão, que um dia é descoberto em uma mina de sal por Batiatus, um amoral coordenador de uma escola de gladiadores. Lá Spartacus é obrigado a treinar e fazer parte do seleto time de lutadores de Batiatus. Em uma apresentação para Marcus Crassus, Spartacus perde a batalha para Draba, que se nega a matá-lo, e se sacrifica tentando matar o romano. Isso marca Spartacus, que um dia lidera uma rebelião na escola de gladiadores, se liberta e monta um exército de escravos que pouco a pouco ganha espaço e território e começa a aterrorizar Roma, não apenas com a ameaça violenta que eles representam, como a perigosa lenda e influência que Spartacus pode criar nos escravos e dominados pelos romanos.

Diz a história que Kirk Douglas ficou muito chateado com Wiilam Wyler por ter perdido o papel de Ben Hur para Charlton Heston. Então, o homem das covinhas quis ele mesmo produzir e atuar no seu épico. Comprou os direitos do livro de Howard Fast, sobre a história da revolta popular que fazia sucesso nas rodas comunistas da época e Kirk contratou para adaptar a obra, Dalton Trumbo, um dos 10 de Hollywood, roteirista que acabou preso por não colaborar com o comitê de atividades antiamericanas. Trumbo estava marcado e passou anos fazendo roteiros sem assinar e Spartacus foi o primeiro que, depois de anos, aparece com seu nome nos créditos (existem controvérsias, uns dizem que no filme Exodus meses antes ele também já estava creditado). Mas a lenda de Spartacus foi essa, libertar e rasgar para sempre a lista negra da abominável era de perseguição Macartista. Trambo, um dos mais talentosos de seu tempo, melhorou e adaptou com maestria o roteiro de Fast. Spartacus, se tem algo que o difere de muitos épicos que infestavam os cinemas nos anos 1950, é que além do espetáculo visual, era um filme recheado de diálogos ricos. Muito da grandiosidade do filme está em frases bem colocadas, uma amostra do puro talento do roteirista que consegue ir na contramão dos épicos, normalmente recheado de diálogos insossos e clichês, dando ao filme  um rico tratamento de palavras.

A primeira opção para a direção que Douglas queria era Antonhy Mann, mas devido a inúmeras brigas e desencontros, em duas semanas de filmagens ele demitiu o diretor. Deu sorte também que Marlon Brando dispensou Stanley Kubrick de seu filme A Face Oculta, que ele mesmo quis dirigir. Kirk conhecia bem o jovem Kubrick, pois ambos trabalharam no genial Glória Feita de Sangue, e a escolha do promissor norte-americano foi extremamente acertada. Kubrick deu um tom humano aos épicos, conseguiu mostrar a grandiosidade da história com belíssimas tomadas, já dando seus ares de perfeccionista e sempre explorando uma naturalidade aos personagens, que fugindo do padrão tinham fraquezas, medos. Spartacus pode ser definido quase como um grande épico realista, diferenciando dos clássicos do gênero com personagens com sentimentos, humanidade, dúvidas, tanto no lado dos escravos quanto no lado dos romanos.

Kirk Douglas além de ser o pai da criação do filme, simplesmente emociona e nos dá uma gigantesca atuação como Spartacus. Ele está praticamente perfeito como o audacioso revolucionário escravo, mostrando sua transformação como o resiliente  trabalhador nas minas de sal ao imponente líder que guia um povo atrás da liberdade.  Um herói viril, mas de carne e osso. Jean Simmons como Varinia, a escrava que acaba sendo a paixão de Spartacus, também tem uma luminosa atuação, sempre ao lado do herói nas boas e nas ruins. Uma cena em especial envolvendo o primeiro encontro dos dois é fantástica, quando ele está numa cela e a recebe como enviada para favores sexuais. Spartacus confessa a ela que nunca teve uma mulher na vida e ela o encara sem perder a postura e se impressiona com a declaração dele, mostrando a desconstrução da virilidade do personagem. Tony Curtis tem um importante papel como o desertor que prefere se juntar aos escravos que ficar com Crassus, também tem uma atuação discreta. Mas o filme é realmente do trio inglês. Charles Laughton, como Gracco, o mais bonzinho do senado, dá seu show de interpretação, mostrando toda a dubiedade do poder que serve apenas para agradar aos outros desde que isso lhe dê uma recompensa. Como sempre o ali veterano ator esbanja talento, inclusive tem uma cena sensacional em que ele está com um jovem Julio Cesar (John Gavin) e compra uma ave para sacrificar aos deuses, e Julio o questiona: mas você não acredita neles, Gracco responde: não acredito, mas o povo tem que acreditar que eu acredito, assim eles me temem e respeitam.

Peter Ustinov está demais como o dúbio, mas simpático Batiatus. O papel como o líder atrapalhado e covarde da escola de gladiadores, que passa o filme todo tentando ou se esquivar de Spartacus ou de Roma, rendeu a ele um Oscar de ator coadjuvante justíssimo. Ustinov conquista o público com sua falta de escrúpulos, mas sempre com um jeito que consegue por menos digno que seja, cativar, ou fazer ficar com pena dele. Enfim, fechando a trinca do chá das cinco temos Sir Laurence Oliver como Marcus Crasso, general incumbido de aniquilar Spartacus. Oliver passa ao mesmo tempo um sentimento de raiva pelo seu temido inimigo, mas também uma certa inveja do poder e popularidade do ex-escravo, tudo numa atuação primorosa que provocam um dos grandes embates do cinema entre Crasso e Spartacus, que como o mesmo diz não adianta matar Spartacus, é preciso matar a lenda dele. A trilha é assinada por Alex North, misturando momentos de euforia com as passagens dos exércitos de escravos em contraponto a marchas de guerra nas cenas dos ataques do general Crasso, além de um tema de amor que demonstra com expressividade a paixão de Spartacus e Varinia. O filme tem cenas clássicas, a luta de Spartacus e Draba (Woody Strode) na arena para saciar os luxos e futilidades dos romanos, o combate entre e exército de Crasso e os escravos revoltosos também é de uma beleza e técnica sensacionais, abusando de tomadas abertas, violência e uma fotografia viva e grandiosa. Com certeza uma das cenas que mais marcaram gerações é quando Crasso pede no meio de centenas de prisioneiros que Spartacus se revele, e quando esse ia se entregar, todos começam a gritar: “Eu sou Spartacus!”, arrepiante demonstração que a semente já está com os frutos colhidos e a lenda de Spartacus já está enraizada e nenhum romano podia mais deter. Com locações em Madri e alguma parte na Califórnia, o filme custou 12 milhões de dólares na época, e mesmo não sendo um sucesso retumbante de bilheteria se pagou e ganhou status de cult com o passar dos anos. Teve seis indicações ao Oscar e fora a de Ustinov, ganhou melhor direção de arte, fotografia e figurino.

Spartacus completa 60 anos e continua grandioso. Um filme praticamente completo, uma história atemporal, onde uma luta por justiça liderada por um inesquecível personagem, um roteiro rico em diálogos marcantes e um visual exuberante marcaram época. Tudo isso resultado de uma união entre um ressentido ator, um diretor moleque – mas arrojado, um roteirista perseguido e um trio de atores ingleses geniais que transformaram a história de uma quase esquecida revolta de escravos em uma Roma pré-cristã numa motivadora história de luta onde qualquer um que ainda se comove com injustiças teria o prazer de gritar: “Eu sou Spartacus!”.

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