Fragmentado (Split) – o bem e o mal em um único corpo.

O que transforma um filme focado praticamente em duas pessoas em uma obra-prima? Atuações marcantes e um roteiro corajoso, além da direção segura do diretor M. Night Shyamalan. Isso sem contar que esse longa é a sequência direta de Corpo Fechado.

O longa começa com Casey (Anya Taylor-Joy), uma estudante cujo prazer está em provocar detenções que a mantenham afastada do restante da turma. Ela e duas “amigas” aguardam o fim da detenção para voltarem para casa. Em um gesto de boa vontade, Casey é convidada a ir com elas de carro, uma singela carona. Até este momento a situação está aparentemente normal, mas nada é apenas “normal” em um filme de Shyamalan, fato comprovado com a chegada de um sequestrador brutal e metódico. Um planejador que não abre espaço para erros.

Vagarosamente descobrimos que o homem por trás do sequestro tem algum problema. Ele é medicado em um consultório por uma renomada médica especialista em pessoas com transtornos de personalidade. A doutora, uma senhora chamada Karen Fletcher (Betty Buckley), mostra apreço e preocupação verdadeiros por seu paciente. Ela, assim como o Sr. Vidro, crê na existência de pessoas muito mais capacitadas que os seres humanos normais.

A doutora acredita piamente que esse transtorno de personalidades é uma defesa do cérebro, uma evolução genética que torna seu paciente um super-humano. Quimicamente, ela diz, há bases para sua tese. Em contrapartida, começamos a ver algumas das facetas de Dennis (James McAvoy), uma das personalidades adotadas.

Esse é um ponto interessantíssimo abordado por Shyamalan. Nós, seres “normais”, usamos de máscaras sociais, um termo muito utilizado em sociologia que define como nos comportamos em diferentes situações e ambientes. Para esclarecer, tomemos por base um pai de família: diante dos filhos ele tem um comportamento; para sua esposa, ele tem outro; no grupo de amigos encontraremos outro indivíduo; ao se deparar com estranhos, provavelmente ele assumirá uma persona diferente. Em suma, somos aquilo que as pessoas ao redor e as situações pedem. Isso é um dos destaque que o diretor quer que percebamos.

Dentro da teoria da doutora, esse tipo de pessoa pode ter força incomum quando incorpora uma personalidade que acredite ser forte; também pode ter alergia a insetos, medo, depressão, raiva ou quaisquer outros traços de personalidade. Isso piora quando há muitas personalidades em um só corpo. Teoricamente, um indivíduo suprime o outro… na mente.

Enquanto isso, conhecemos parcelas do passado de Casey. A vida com seu pai, os passeios para caçar. Tudo isso moldou sua personalidade. Isso a ajuda diante de Kevin e suas personas. Casey é focada, enquanto Claire (Haley Lu Richardson) e Marcia (Jessica Sula) querem a fuga a todo custo, algo difícil diante das múltiplas pessoas que Dennis assume. Até mesmo uma criança de nove anos surge na persona dele, indivíduos únicos e unidos por um propósito comum.

Um ponto assustador está na interpretação de James McAvoy, o responsável por dar vida a tantas pessoas diferentes apenas com mudanças de postura e alternância do tom da voz e traços comportamentais. Chega a assustar a simples ideia de encontrar alguém assim.

O terror aumenta quando Dennis sai do lugar do sequestro e libera a Besta, a 24ª personalidade, uma criatura de força sobrenatural, ágil e maligna. Um monstro em seu sentido mais pleno.

Conduzindo o restante da trama com maestria, Shyamalan brinda o espectador com uma sequência tomada pelo medo, a tensão e a revelação de um ser tão poderoso quanto aquilo que ele acredita ser. Mortes ocorrem. Sangue é derramado. A convicção de que os impuros precisam ser purificados é a força-motriz das várias personalidades que se unem no corpo de Kevin (o verdadeiro nome do sequestrador) e isso fica bem explicito com os diálogos fortes e inteligentes tecidos pela personagem de McAvoy. Mesmo quase restrito a um ambiente único, Shyamalan conseguiu criar um ambiente claustrofóbico e angustiante. Não sabemos o que pode ocorrer, já que nunca estamos diante de uma mesma pessoa quando se trata de Kevin e seus 23 “companheiros”.

O roteiro nos guia (através de flashbacks) pelo passado de Casey e todos os sofrimentos pelos quais ela já passou. Gradualmente percebemos os motivos por trás de suas ações na escola. Gradualmente tomamos ciência do horror de seu passado, desde a perda do pai até a aproximação do tio, o homem que a cria após a perda do pai dela. Destaco aqui a atuação da menina Izzie Coffey que interpreta Casey ainda pequena.

Mesclando passado e presente (tanto de Casey quanto de Kevin), ampliamos aos poucos a compreensão sobre tudo que gerou a situação de cárcere e a resignação da jovem. A frieza de Casey é fruto de seu passado, assim como está no passado um trauma que a moldou na dor e na tristeza. Com base nessa vida traumática, a Horda e a Besta passam a vê-la além daquilo que a bela face deixa transparecer.

Ao final nós ficamos com o futuro incerto de Casey, a fuga da Horda e a revelação de que Dunn (Bruce Willis) ainda vive, quinze anos após prender o Sr. Vidro (Samuel L. Jackson).

Que venha o terceiro filme, Vidro, que encerra um ciclo de histórias de heróis, humanos, vilões e muito mais…

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