Duras palavras – “Além das Palavras”

A poetisa norte-americana Emily Dickinson só ganhou fama e reconhecimento após sua morte, em 1886. Por isso, muito pouco da sua vida pessoal ficou conhecida ao longo dos anos. A sua infância discreta até a fase adulta reclusa e solitária viraram uma cinebiografia dirigida por Terence Davies, “ALÉM DAS PALAVRAS”, que chega às plataformas de streaming no dia 3.  “Emily Dickinson foi consagrada postumamente e eu acho isso muito injusto. Eu não sei como grandes artistas suportam isso. Ela merece ser aplaudida para sempre”, opina o diretor.

Protagonizado por Cynthia Nixon, o longa mostra a vida reclusa levada pela família Dickinson e a forte ligação de Emily com os pais, com quem morou durante a vida adulta, após se formar na faculdade. “Ela não conseguia ficar longe de casa, dos pais e irmãos. Para Emily, a família era o universo, e o universo era a família. Eles eram extremamente fechados, quase uma família claustrofóbica”, revela Davies.

Após o seu falecimento, mais de 1700 poemas foram encontrados. Em vida, a escritora não teve mais do que dez poemas publicados, muitos deles anonimamente. Muito do que se sabe até hoje sobre Emily Dickinson foi descoberto através de cartas encontradas. Estas cartas eram trocadas principalmente com a cunhada e vizinha, Susan Dickinson, e com alguns escritores e intelectuais, como Samuel Bowles e Helen Hunt Jackson.

“Não sou Ninguém! Quem é você?/ Ninguém Também?/ Então somos um par?/Não conte! Podem espalhar!/ Que triste ser Alguém! / Que pública a Fama / Dizer seu nome como a Rã —“ (‘m Nobody! Who are you?Are you — Nobody — Too?/ Then there’s a pair of us!/  Don’t tell! they’d advertise — you know!/  How dreary — to be — Somebody!/  How public — like a Frog —/  To tell one’s name — the livelong June —/  To an admiring Bog!)

Essa é um dos mais de 1700 poemas que Emily Dickinson escreveu em sua vida, dos quais menos de 10 foram publicados enquanto estava viva. Vida esta que é explorada no filme “Além das Palavras” (“A Quiet Passion” – 2016), disponível no iTunes e que tive a oportunidade de assistir através do “Sofá Digital”!

Emily Dickinson é, no mínimo, uma figura enigmática, pouco se conhecia de sua vida além do deixava transparecer em suas poesias. O filme começa mostrando o momento em que Emily sai do colégio interno, liderado por freiras e que tinha esse objetivo para suas alunas, mas não era exatamente o que ela queria para si.

Ao voltar para casa do pai, Emily se ver livre para se dedicar ao que mais gosta, além de viver com sua família, escrever poesias, recebendo o apoio do pai, tanto para escrever quanto para publicar alguns de suas obras. Ela teve pouco sucesso, seu editor certa vez falou que suas rimas eram infantis e que ela não teria futuro algum.

Apesar de ter valorizado sua liberdade ao sair do internato, Emily passou sua vida reclusa nas propriedades de seu pai, só saia para ir a igreja, e olhe lá, apenas quando ela queria.

Ela tinha muito amor por sua família, nunca acreditou realmente que poderia se casar, sair daquele núcleo familiar, mas também não era fácil com eles. Sempre protestou com as convenções sociais da época, que obrigava a mulher a acreditar e a fazer exatamente o que os homens mandavam (o que não mudou muito, em pleno século XXI).

A religiosidade também é muito presente e importante na vida de Emily, ela deixou o internato porque não queria ser freira (e ser salva, segundo a madre superiora), mas acreditava em Deus. Exatamente o que aconteceu anos depois, quando o pastor da região fez uma visita na casa de seu pai e ela se recusou a se ajoelhar para uma oração.

Foi esse espírito revolucionário, argumentador e nunca conformado que a tornar-se gradualmente amarga, chegando ao ponto de ter somente sua irmã como amiga. No seu leito de morte ainda teve o irmão e a cunhada, quem tinha certa simpatia pelas ideias de Emily.

Interessante notar um aparente paradoxo nas atitudes dessa poetisa, aclamada pelo movimento feminista. Como já foi citado, valorizou sua liberdade, mas não se aventurou na vida, prezava pelo intelecto, mas dava importância demais a sua aparência.

Essa questão da aparência fica clara em muitas cenas, mas tem uma bem específica, quando um editor de jornal vai visita-la. A irmã dela a avisou que ele havia chegado e pediu para que descessem para o ver, Emily disse que ele era bonito demais e ela não era bonita o suficiente para estar na presença dele.

É um filme muito denso, tem suas nuances poéticas, mas bem ao estilo Dickinson. O elenco faz jus a esse estilo e tem dois destaques, que, não por acaso, são as duas principais, Jennifer Ehle e Cynthia Nixon.

Jennifer Ehle faz a irmã mais nova de Emily, Vinnie. Ela é a luz da família, sempre alegre e positiva, mesmo nos momentos mais obscuros da irmã. A atriz já é familiar com o gênero, estrelou a série “Pride and Prejudice”, no ano de 1995.

Emily é interpretada por Cynthia Nixon, famosa pela advogada cosmopolita Miranda Hobbes, da série e dos filmes “Sex and the City”. Cynthia despe-se completamente das vaidades de Miranda, vivendo uma mulher amarga e talentosa, difícil de conviver. Ela consegue passar as nuances de drama e, por vezes, exagero que a personagem pedia.

Que possamos lutar pelos direitos da mulher com a mesma convicção que Emily tinha em contestar, fosse as limitações da mulher na sociedade da época, fosse nos parâmetros que a igreja (os homens que lideram, pelo menos) impõe.

Beijinhos e até mais.

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