Crítica | Dois Papas

“A ditadura consegue acabar com o livre arbítrio de um ser humano”. (Papa Bento 16, em Dois Papas).

Alemanha, década de 40, um seminarista alemão, Joseph Ratzinger é obrigado, como mais de 90 por cento dos jovens alemães, a servir a Juventude Hitlerista, braço juvenil nazista. Aos 16 é alistado forçosamente ao exército nazista. Nunca pegou em armas, era operador de rádio e no fim da guerra foi preso pelo exército norte-americano. Buenos Aires, 1976, Jorge Bergoglio, chefe da congregação jesuíta, para defender seu direito de expressão católica e salvar vidas não vê escolha e acaba tendo encontros com o temido Almirante Emilio Massera, chefe da Esma, centro de detenção e tortura da ditadura argentina. Com isso consegue salvar vários opositores do regime, dando guarida nos seminários jesuítas e ajudando alguns a fugirem do país clandestinamente. Um foi considerado nazista, outro colaborador da ditadura militar mais cruel da América do Sul. Os dois são papas, falamos de Bento 16 e Francisco. Um fictício suposto encontro dessas duas personalidades tão diferentes, mas com passado polêmico é o tema do mais novo e encantador filme do brasileiro Fernando Meirelles, produção da Netflix, Dois Papas (The Two Popes, 2019).

O filme conta um suposto encontro entre o cardeal Bergoglio que vai ao Vaticano atrás do Papa Bento 16 para pedir sua aposentadoria por não estar satisfeito com os rumos da igreja. Esse encontro se torna um respeitoso e sábio debate sobre duas personalidades distintas, mas que estão abertas para discutir o bem da igreja católica. Bergoglio está decidido em se aposentar, Bento 16, atolado num mar de rejeição pelo seu conservadorismo, escândalos financeiros de assessores próximos e acusações de pedofilia pelo mundo afora também está disposto a largar o papado. O encontro dos dois muda para sempre suas vidas e o rumo da igreja católica.

Meireles nos apresenta mais um grande filme para o deleite do espectador. Conta com maestria uma história que podia ser piegas e de interesse apenas a pessoas religiosas a transformando num doce e humano estudo de personalidades opostas e com muito respeito. Tem ali seu estilo, o filme às vezes em tom de documentário, seus flashbacks, edição espetacular a cargo de Fernando Stutz, os maneirismos típicos de Meirelles com grandes tomadas ajudadas pelo cenário sacro todo construído para o filme, além das paisagens naturais de Roma, tudo isso orquestrado pela fotografia belíssima de seu fiel escudeiro César Charlone. Um filme de construção visual belíssima e como todos os trabalhos de Meireles: ágil e moderno apesar do tema que à primeira vista poderia ser enfadonho – quem se interessaria por embates entres duas autoridades religiosas? O filme prova o contrário e cativa intensamente.

Mas a cereja do bolo é o roteiro de Anthony McCarten, que adaptou sua própria obra O Papa. As conversas entre Bento 16 e o cardeal Bergoglio são de uma humanidade e delicadeza única. Os confrontos de ideias das duas autoridades eclesiásticas é algo de uma leveza e incrível: enquanto Bento 16 com sua aura tradicional questiona Jorge e seu suposto progressismo, vemos um bate e rebate de ideias, muitas vezes pontuado pelo humor respeitoso de Jorge, e em nenhum momento vemos os dois perderem as estribeiras, um respeito mutuo de duas cabeças completamente opostas mas com um intuito apenas: o bem da igreja católica. Quase uma aberração vermos diálogos desses hoje em dia em um mundo onde as diferenças de ideias são tratadas com ódio e nossas verdades são sempre as absolutas. Antony Hopkins está muito bem como o pouco carismático, mas sábio Bento 16, mas quem ganha o filme é Jonathan Pryce que faz um irresistível cardeal Bergoglio com um humor e simplicidade contagiantes e um respeito irretocável pelo Papa Bento.

Dois Papas acaba sendo um filme belíssimo, delicado e extremamente humano, mostra um conflito sem ter conflito e nos ensina que o diálogo é sempre a melhor saída para qualquer crise e diferença. Fernando Meirelles consegue passar todo esse clima com imagens belíssimas, usando de uma trilha pop sacra, misturando Beatles e Abba ao clima do Vaticano e recria com maestria e humor o ambiente sacro onde aqueles homens por vezes tão sisudos e respeitados arcebispos são meros mortais que gostam de tomar Fanta, comer pizza, assistir programas de televisão baratos, são fanáticos por futebol e o principal: são cheio de dúvidas, nada mais humano do que isso. Enfim, se Ratzinger era nazista e Jorge colaborador de ditadura, esse passado com certeza está enterrado, ao menos nas ações que ambos fizeram no futuro. Inclusive uma cena do filme é bem marcante, quando Bento 16 questiona o passado de Jorge que era contra divórcio, direitos de homossexuais e escondia livros marxistas e como pode ter mudado tanto, Jorge apenas responde: “Eu mudei”. Enfim, como é bom mudar.

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