Crítica: O Som do Silêncio

Obviamente que para qualquer ser humano, a perda de audição deve ser um dos maiores dramas pessoais que podemos carregar. Para um músico então, um pesadelo, um castigo cruel que pode abortar os sonhos de uma carreira, de sonhos e de uma vida. Beethoven, foi um desses casos. Um dos maiores gênios da música foi acometido pela perda auditiva. Ninguém realmente sabe a causa (uns dizem que devido a ânsia de compor, ficava noites em claro e jogava baldes de água fria na cabeça para não adormecer, o que poderia ter ferido os tímpanos), mas mesmo assim, nos premiou com uma obra como a sua Nona Sinfonia, composta já com a deficiência. Brian Wilson, gênio dos Beach Boys, não escuta nada no ouvido direito desde que era criança e mesmo com metade da audição ele produziu diversos álbuns maravilhosos e uma obra prima, Pet Sounds. Noel Gallagher, Eric Clapton e Ozzy Osbourne também sofrem com perdas auditivas consideráveis e zumbidos constantes, talvez por dedicar a vida toda a tocar com som alto. Ruben Stone, um baterista de hardcore, repentinamente perde a audição, história essa contada no ótimo O Som do Silêncio (Sound of Metal, 2019), do diretor Darius Marder e que pode ser conferido no Amazon Prime.

Assista séries e filmes assinando a Prime Vídeo.

Lou e Ruben, além de ser um casal, viajam os Estados Unidos num motorhome e têm uma banda de punk-hardcore, a Blackgammon. A banda seguia em tour de cidade em cidade, na sua rota underground, quando praticamente do nada, Ruben perde quase que completamente a sua audição. No início Ruben se desespera, tenta achar soluções, se renega, fica com raiva, mas obviamente que a dupla é obrigada a cancelar a tour, Lou volta para a sua casa e Ruben, que era viciado em heroína, e com medo de recair, entra em uma espécie de retiro isolado para surdos. Lá conhece Joe, veterano do Vietnã que ficou surdo devido a uma explosão na guerra e que tenta de todas as maneiras mostrar para um inquieto e desesperado Ruben que pode-se viver mesmo com essa limitação.

Brilhante estreia do diretor Darius Marder. Marder nos dá uma aula de como utilizar o som ou a falta dele em um filme. Com uma edição de som perfeita, mostra como estamos acostumados, mas ao mesmo tempo não damos importância para sons triviais da vida, desde a água que corre do chuveiro, o liquidificador ou a nossa própria voz. Poucos filmes conseguiram nos mostrar através de imagens e sons a ausência de ruídos na nossa vida. O roteiro do próprio Marder e do seu irmão Abraham Marder consegue cativar o espectador de uma maneira realista retratando o drama de Ruben. E o melhor, não abusa de clichês de superação superficiais, Ruben é um exemplo de uma geração que quer resposta para tudo e não pode parar, e mesmo se vendo numa condição nova e quase irreversível, prefere soluções imediatas e tende a resistir ao máximo se autoajudar.

O drama dele é contado de uma maneira crua, às vezes até em tom claustrofóbico, abusando da sonoridade da vida e o principal, a quietude e a observação. Ruben é interpretado por um ótimo Riz Ahmed. Em uma atuação extrema, mas sem excessos, Riz consegue com naturalidade nos mostrar a mudança abrupta de Ruben, um ex-viciado, que tinha uma vida de sonhos, com a namorada, sua liberdade e sua paixão pela bateria, ver tudo ruir e da noite para o dia reaprender a viver, seu jeito introspectivo e seu olhar perdido compõem com perfeição seu personagem. Riz aprendeu a língua de sinais e a tocar bateria para atuar no papel.

Olivia Cooke está bem também como a companheira dele, Lou, que ao mesmo tempo em que quer ajudá-lo, tenta fugir da situação. Paul Raci, como Joe, o dono e instrutor da comunidade de surdos, trabalha muito bem e tenta de forma crua mostrar para Ruben que lutar contra a sua limitação auditiva é inútil e sim para quem fica surdo o importante é aprender a ser surdo.

O Som do Silêncio foi indicado a seis Oscar: melhor filme, ator (Riad Ahmed, primeiro de origem árabe a concorrer ao Oscar), roteiro original, ator coadjuvante (Paul Raci), edição e som.

O Som do Silêncio tem o mérito de contar uma história que tinha tudo para ser de um drama pessoal, vencido pela força de vontade e abusando de pieguice, em um filme reflexivo, humano e verdadeiro. Poucas vezes no cinema vi através da edição de som conseguir entrar ao fundo nos sentimentos do personagem, seu desespero, sua ansiedade, a cena em que ele participa de uma reunião de surdos sem saber se comunicar por sinais ou ler lábios dá uma sensação de angústia e ausência profundos. Enfim, é um filme que mostra que às vezes situações extremas que não podemos evitar, podem se tornar uma busca forçada por amadurecimento, reflexão e que do mesmo jeito que o som é essencial e quase vital, o silêncio também pode ser um aliado.

Mais do NoSet