Aquaman: all hail the king!

Décadas atrás uma animação fez sucesso entre uma juventude e isso se refletiu pelos anos que se seguiram. Estamos falando de Superamigos, série de animação da Hanna-Barbera que durou entre 1973 e 1985. Entre os heróis que compunham a equipe, temos o Aquaman. Mas, assim como fizeram com a Mulher-Maravilha (e seu jato invisível) e o Batman (ainda derivado da série de TV da década de 60), o herói submarino foi apresentado de forma caricata. Basta ver as cenas abaixo e entenderão sobre o que falo:


Não satisfeitos com um uniforme laranja e verde, eles adicionaram a telepatia marinha que o permitiu, entre outras coisas, cavalgar um cavalo-marinho rosa, surfar com golfinhos e planar com peixes voadores presos em cordas. Para piorar, isso o tronou um herói menos valorizado entre os fãs de quadrinhos que já estavam diante de obras mais sérias nas HQ como X-Men (com conteúdo focado na inclusão dos “diferentes” e no racismo), Monstro do Pântano (de Alan Moore, 1983) e outras.

Para ampliarmos o “descrédito” do personagem, basta citar que até Bob Esponja tem uma versão caricata do herói, o Homem-Sereia. Com um sidekick chamado Mexilhãozinho (uma brincadeira com o Aqualad, um ajudante do Aquaman). Isso é reflexo dos anos em que o herói era apenas um personagem fraco na série da TV. Essa impressão cômica, caricata, poderia condenar o rei de Atlântida ao esquecimento, mas novos escritores deram ares mais dignos à personagem.

Entretanto, eis que surge uma esperança ao vermos o Aquaman no filme da Liga da Justiça. Apesar do visual muito próximo de Khal Drogo (Game of Thrones), também interpretado pelo ator Jason Momoa, o rei dos mares surgiu com toda a força que esperamos durante anos no cinema e só havíamos visto nas HQ.

E então, finalmente, estreia o longa-metragem solo do herói. Muitos temores por parte de alguns fãs (a receptividade do público junto aos filmes da DC tem sido mediana, exceção à Mulher-Maravilha) que não gostaram de outras obras baseadas em seus heróis e vilões dos quadrinhos. Será que Aquaman conseguiu quebrar a barreira do preconceito provocado pela série da década de 70?

Após o trailer, minha análise completa do filme. Apesar de boa parte da trama ser de conhecimento dos que já leram os quadrinhos, recomendo cuidado, pois haverá pequenos spoilers.

A origem do Aquaman.

Mais do que uma simples história em quadrinhos, Aquaman é uma fábula moderna. A origem dele é similar à do Superman e da Mulher-Maravilha, já que todos partilham de dois mundos diferentes. Arthur Curry é filho de um faroleiro chamado Tom Curry (Temuera Morrison) e da rainha de Atlântida, Atlanna (Nicole Kidman). Eles quebraram paradigmas para estabelecer uma união entre espécies diferentes. Entre Tom e Atlanna está a lição mais forte: o amor não faz distinções. Essa é uma passagem do longa que remete – com claras mudanças – a origem do Aquaman nas HQ.


O foco dessa trama, entretanto, não se situa apenas no relacionamento de um humano e uma Atlante. O foco está no fruto dessa relação, um indivíduo capaz de habitar os dois mundos e até mesmo uni-los.

Para retratar o avanço e aprimoramento de Arthur até que este se torne o Aquaman, o diretor James Wan fez uso de flashbacks através de transições de cena muito bem elaboradas e com ângulos de câmera diferenciados. Tudo flui de forma perfeita para que até mesmo os que desconhecem 100% do universo do Aquaman possa se situar. Acrescentemos a isso um ponto: Wan se valeu do roteiro de Will Beall e David Leslie Johnson-McGoldrick (que contaram com a colaboração de Geoff Johns e até do próprio James Wan) para estabelecer não apenas uma história simples ou algo comum; Wan trouxe ao espectador um espetáculo visual inacreditável, além de uma recriação de ambientes marinhos perfeita.

O ódio pelo diferente.

Orm (Patrick Wilson) é o rei de Atlântida e candidato ao domínio total do mar. Orm é meio-irmão de Arthur e nutre um ódio imenso por ele, fato explicado ao longo da trama. Claro que não há apenas um motivo para as várias tentativas de eliminação do meio-irmão, pois Orm é um ditador em pele de cordeiro, um demagogo que usa de todos os subterfúgios para conseguir o que quer.

As passagens que mostram o rei de Atlântida na busca por uma coalizão servem para destacar duas coisas: a primeira é a sede de poder incontrolável; a segunda é sua raiva por toda a humanidade, seres que ele considera inferiores. Tenho certeza que o ritmo narrativo acelerado pode ter desviado a atenção de boa parte dos espectadores, porém é preciso evidenciar que esses dois pontos citados são os mesmos que geraram um império responsável pelo extermínio de milhões: o Terceiro Reich. Tal como Hitler, Orm se cerca dos poderosos para ter credibilidade e influência e, quando chega ao poder, inicia uma caçada aos que ele considerava como inferiores: os judeus. Esse é um dos pontos corajosos da trama que destaca a supremacia de uma raça sobre outra.

Sexo frágil.

Esqueçam tudo que já ouviram sobre a fragilidade feminina. Atlanna e Mera (Amber Heard) são tão poderosas e destemidas quanto a própria Mulher-Maravilha. Suas ações são centradas e mostram o domínio das mulheres sobre as emoções ao evitar atos impulsivos. Outro ponto forte da presença das duas é a gama de poderes e força de ambas. Lindas, sim. Frágeis, nunca.

Elas têm outro ponto característico que fará as mais fervorosas no feminismo irem ao delírio: elas não são só mulheres que se apaixonam; elas fazem seus amados se apaixonarem por causa da força e da determinação que têm em si.

O esforço para fazer um filme à altura da mitologia do herói.

James Wan não se valeu apenas de um elenco e de um roteiro muito bons. A parte técnica foi indispensável para dar credibilidade às cenas aquáticas e aos reinos submarinos. Elenco e produção sofreram bastante para criar um longa-metragem lotado de elementos aquáticos, mesmo em plena era dos efeitos digitais. Para confirmar o que disse, vejam o pequeno vídeo com bastidores da produção.

Os vilões.

Sobre Orm creio que vocês tiveram uma apresentação à altura. Quanto ao Manta Negra (Yahya Abdul-Mateen II), vou tecer alguns comentários.

O roteiro fez questão de dar uma origem ao Manta. Colocá-lo como um pirata moderno (de igual modo ao que vimos na Somália) foi uma ideia interessante e que está mostrada com muita coerência em sua primeira aparição. Desse ponto em diante, após um violento encontro entre ele, seus capangas e o Aquaman, aguardamos as justificativas para que surja um vilão com força, resistência e poderes capazes de pôr em risco a vida do rei dos mares. Na minha opinião, o desenvolvimento do personagem, sua motivação e o ódio gerado são suficientes para que ele não se torne um mero coadjuvante, assim como acontecia em Superamigos ou outros filmes do gênero onde o vilão é raso.

Grandiosidade.

Atlântida era um reino próspero e dotado de tecnologias até hoje inimagináveis para nós. No filme isso é mostrado como um misto de Zion (Matrix) e Minas Tirith (O Senhor dos Anéis). Apesar da aparência parecida, as similaridades param por aí. Atlântida é um reino e há outros reinos submarinos tão grandiosos quanto ela, assim como há áreas que nem os habitantes do mar se atrevem a passar.

Em todas as cenas da cidade perdida, a grandiosidade é o ponto-chave, aquilo que comprova o quanto há de orgulho, desenvolvimento e tradição convivendo juntos.

Como não poderia deixar de ser, onde há uma sociedade há algo brutal. Isso está representado no Coliseu, o palco para o combate entre Orm e Aquaman (por sinal, uma senhora luta).

Ecologia.

Arthur é o rei dos mares. Orm quer ir muito além disso. Para dar mais ênfase ao seu poder e também para mostrar uma lição ao povo da superfície, Orm despeja nas áreas costeiras todo o lixo que o oceano recebeu dos homens que vivem na terra. Mais do que uma grandiosa cena de tsunami, essa passagem serve para alertar sobre o crescente problema do descarte do lixo nos mares e oceanos, algo que provoca e provocará a morte de incontáveis animais marinhos caso o homem não tome uma atitude drástica para evitar essa tragédia.

Telepatia.

Vamos voltar ao início do post para relembrar que a fase Superamigos do Aquaman não foi uma das mais proveitosas para ele. Apesar disso, alguns de seus elementos foram reaproveitados nesse novíssimo longa da Warner. Nesse caso, o maior destaque ficou por conta do uso da telepatia para comandar os peixes e demais criaturas marinhas. Aliás, algumas das mais impactantes cenas envolvem esse poder. Outro ponto reaproveitado que levou a platéia à loucura foi vê-lo montado em um cavalo-marinho gigantesco em uma cena de guerra impecável.

Esse longa decretou o fim da humilhação do personagem diante de seu público.

Humor e Amor.

Há o uso de humor em poucas passagens, mas nada que incomode tanto quanto em Thor Ragnarok e outros filmes que abandonam o teor dramático – ainda que isso seja pedido pelo roteiro – para dar um ar mais “soft” à produção. Aquaman usa o artifício do humor para dar mais dinâmica e também como alívio cômico, sem exageros.

O amor é algo que fica latente desde o surgimento de Mera. Quais os artifícios para conquistá-la ou não são novos e divertidos pontos na trama. Contudo, ressalto que Mera é muito mais que uma coadjuvante bonita, uma “bond girl”… ela é o equilíbrio que desperta em Arthur a consciência de seu real papel nos mundos (aquático e terrestre).

Devo dizer que há momentos onde a direção e o roteiro exageraram para dar mais tempo à dupla/casal, mas nada que minimize o impacto visual e a ótima história do filme.

Obs: as participações de Willem Dafoe (Vulko), Dolph Lundgren (Rei Nereus) e a inclusão das vozes de Julie Andrews (Karathen), John Rhys-Davies (Brine King) e Djimon Hounsou (Rei Ricou) mostram que atores veteranos fazem a diferença entre uma obra frágil em interpretação de seus personagens e uma obra competente e voltada a agradar seu público.

Enfim, Aquaman tem fã service, nostalgia, ação alucinante, uma bela fotografia, paleta de cores ousada e um elenco competente e dirigido por alguém também possuidor de competência. O temor acabou e só resta dizer que esse é um filmaço que trará novamente o prestígio do herói e fará com que fãs antigos busquem outras tramas onde o rei de Atlântida apareça para punir os errados e salvar os oceanos e tudo aquilo que eles representam para manter o equilíbrio da balança.

E que venha o segundo filme…

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