Blade Runner 2049: ficção e inteligência a serviço do bom cinema.

Blade Runner 2049 é uma sequência direta do filme de 1982. Foram necessários 35 anos para termos esse longa-metragem e valeu a (longa) espera. Mas não se preparem para um filme blockbuster. Essa sequência é melancólica, reflexiva e irá pôr o espectador para raciocinar. Há ação, drama, suspense e muita inteligência por trás dessa trama espetacular.

Sendo assim, a partir de agora fica o aviso de que esse texto contém alguns SPOILERS! Siga por sua conta e risco caso não tenha assistido o longa antes…


A continuação.

Por trás da divulgação de um filme aparentemente de ação, muitos irão se questionar sobre o ritmo narrativo de Blade Runner 2049. É óbvio já com poucos minutos de projeção que estamos diante de uma continuação do longa de 1982. Aliás, uma continuação extremamente bem elaborada.

A trama inicia-se em 2049, exatos 30 anos após o primeiro filme, mas não se prenda a essa data. Com o decorrer do tempo recebemos novas datas e fatos que situam o ano de 2021 como o ponto de ebulição de uma corrida pela tecnologia que revolucionará o mercado de replicantes. Essa é a busca que permeia toda a trama e o estopim para uma guerra fria entre humanos e sintéticos.

É nesse contexto que somos apresentados ao agente da polícia de Los Angeles K. (Ryan Gosling), um replicante que exerce quase a mesma função de Deckard (Harrison Ford): retirar os replicantes antigos. Essas são as diferenças básicas entre K e Deckard, já que este é humano e o outro não, além de Deckard ser o responsável por exterminar todos os replicantes, enquanto K só “retira” os modelos antigos.

Corporações.

A antiga Tyler Corporation era a responsável pela criação dos replicantes em Blade Runner. Nesta sequência, a Wallace é a nova responsável por criar os replicantes que possuem uma obediência infinitamente maior em suas programações. Isso, contudo, não impede que “bugs” surjam para complicar a história. Aliás, o uso do termo bugs pode parecer equivocado quando estamos falando de uma vida produzida com Inteligência Artificial aberta. Os questionamentos, próprios de seres inteligentes, seria algo de se esperar, mas estamos falando de muito mais, assim como aquilo que vimos no primeiro longa.

Os objetivos de Tyler e sua corporação foram, segundo esse novo filme, atingidos. Já a meta de Wallace (Jared Leto) é obter o mesmo sucesso evolutivo de Tyler, algo não satisfeito, mesmo com tecnologia muito superior.

Solidão.

K é um solitário por natureza. Ele é introvertido, dedicado ao que faz e um policial cumpridor do seu dever. Isso não o impede de conviver com uma inteligência artificial virtual chamada Joi (Ana de Armas). Joi é uma I.A. evoluída ao extremo, capaz de se adaptar ao seu “parceiro”, assumindo o papel de uma verdadeira companheira. Ela pode ser customizada e transformada na “companhia ideal”, algo que extrapola o imaginável no caso de K. A relação entre os dois é mais afetiva que a de muitos casais humanos.

Joi é uma fonte de carinho e amor para um cara que não é aceito por seus pares (os policiais o tratam por pele-falsa), que o contemplam como um pária. A sociedade comum também o odeia e teme, isso sem falar nos replicantes remanescentes que o veem como um predador da própria espécie.

O amor dela por ele é algo tão impressionante a ponto de ela não aceitar que ele seja nomeado apenas por uma letra (K) ou serial number. Ela escolhe para ele o nome de Joe (um nome quase idêntico ao dela, Joi). Outra prova de amor está na permissão de uma mulher entre eles. Joi não tem um corpo físico, o que não a impede de arrumar uma prostituta e sincronizar seus movimentos com ela, de forma que o amor deles possa ser consumado. São, em suma, almas gêmeas… por mais que isso soe estranho para seres que, teoricamente, não possuem alma.

Um mundo sombrio.

O mundo em que a realidade de K vive é opressiva. Homens e mulheres vivem em aglomerados de prédios ou em guetos. Propagandas tomam conta de todos os cantos das cidades e é possível ter um vislumbre do que será futuramente uma verdadeira megalópole. Apesar disso, as pessoas estão cada vez mais isoladas. A realidade é muito mais virtual do que gostaríamos, uma tendência que já podemos presenciar nos dias de hoje.

Um dos fatos mais importantes está na erradicação da fome. Isso é um passo fundamental para a melhora da humanidade, mas está cada vez mais difícil definir o que é ou não humano. Reparem, entretanto, que não estou dizendo que os replicantes são piores que os humanos ou vice-versa; o que quero evidenciar é a degradação do homem como ser social. Viver ao lado de máquinas, programas ou em realidades puramente tecnológicas tomou o lugar do convívio sadio entre seres humanos. Gostemos ou não, essa é uma tendência preocupante.

Há algumas localidades desoladas nesse mundo futuro. Resultado de conflitos ou de puro abandono? Não sabemos. O fato é que há muito por trás da trama e é citado um grande blecaute que trouxe caos generalizado. O tempo de duração desse blecaute não é dito no filme, porém há três curtas que ajudam a elucidar fatos obscuros, inclusive esse.

Em busca de uma vida, nada mais.

K é um Blade Runner. Ele tem um único propósito: exterminar os replicantes antigos, pois eles não são capazes de obedecer as atuais diretrizes para os replicantes. Isso é o mesmo que dizer que eles apenas querem viver. O primeiro deles apresentado nesse novo filme é Sapper Morton (Dave Bautista), um fazendeiro que guarda o segredo mais importante para toda a trama. Ele é um dos mais antigos replicantes sobreviventes e tem seu destino selado pelas mãos de K. Esse segredo é o ponto de partida para a quebra de um paradigma e a revelação de que há muito mais do que jamais imaginamos sobre o universo criado por Philip K. Dick.

A continuidade da história irá mostrar-lhes que há muito mais de humano nos replicantes do que em nós mesmos… por mais vergonhosa que essa declaração possa parecer.

Nexus.

Os curtas-metragens (três no total) mostram o início do caos. 2022 é um ano onde uma verdadeira guerra civil é deflagrada, ocasionando a morte de humanos, modelos Nexus-6 e até dos recém-criados Nexus-8. A falha nos modelos antigos não pôde impedir o prosseguimento da evolução da humanidade, mas certamente decretou o fim da Tyrell Corp, mesmo com o advento dos novos replicantes.

O passado mostra que houve um censo para identificar todos os replicantes. Aqueles que não se registraram ou estavam registrados e fugiram foram caçados até sua destruição.

O ano de 2022 marca também o apocalipse dos dados digitais, provocado por uma arma que gerou um Pulso Eletromagnético gigante (que contou com a ação de alguns Nexus-8 e também de humanos). Os outros dados físicos foram excluídos à maneira antiga: com fogo. Essa caça aos dados remanescentes tem como propósito esconder o segredo que permanece até o fim de Blade Runner 2049.

O futuro.

Ver Los Angeles e outras localidades do universo de Blade Runner não é algo muito animador. Mesmo repleto de avanços tecnológicos, o isolamento é um grande problema. Alguns vivem em meio a outras pessoas, mas a maioria tem sua própria existência. Essa é uma profecia preocupante, visto que também caminhamos por um caminho muito próximo a esse.

Outro ponto interessante está na dependência das “máquinas”. Os replicantes são os responsáveis pela agricultura em lugares inóspitos e também ocupam lugares antes inimagináveis, como a própria polícia onde K trabalha.

Mas uma coisa não muda. Ricos continuam com suas vidas cheias de conforto e regalias, enquanto os pobres vivem entre vielas e à margem da sociedade. Também não posso deixar de citar o fim de muitas formas de vida animal, substituídas por sintéticos. Apesar da aparente emprego salutar, onde os mesmos não possuem doenças e outros problemas que os animais podem apresentar, soa estranha a ingestão de comida criada pelo homem, não oriunda da natureza.

A busca.

No caminho em busca da solução dos problemas gerados após a morte do fazendeiro e da descoberta em sua fazenda, K se depara com alguns elementos estranhos. Ele encontra um explorador de crianças, outros replicantes e até com Rick Deckard. Essa busca pela descoberta do segredo pode ser a esperança de um traço de humanidade em sua fisiologia, algo capaz de aproximá-lo ainda mais dos humanos, mesmo sendo eles tão imperfeitos.

Nessa empreitada K tem o apoio incondicional de Joi. Ela é uma âncora entre ele e sua vida deixada para trás, assim que tomou a decisão de buscar algo que deveria permanecer – literalmente – enterrado.

K está subordinado à Tenente Joshi (Robin Wright). Ela é uma profissional extremamente dedicada, mas não é complacente com o escárnio de seus outros subordinados no que diz respeito a K. Ela o vê como um dos seus, treinado e obediente, capaz de cumprir suas ordens e é isso que importa. Com o decorrer da trama ela vai entrando no campo de visão de Luv, o que pode se comprovar muito perigoso. Apesar disso, mesmo não vendo K como um igual, parte dela o apoio que ele necessita para iniciar sua busca por Deckard e o segredo encontrado na fazenda de Sopper.

A pedra.

Wallace recebe informes sobre a busca pelo segredo que ele também quer ter em mãos. Para impedir K de achá-lo antes, ele envia Luv (Sylvia Hoeks) uma replicante cuja obediência é quase tão cega quanto o próprio Wallace. Luv é uma replicante assassina, treinada para oscilar entre a mais elegante das mulheres e a mais fatal delas. Ela é o símbolo do quanto a tecnologia mal direcionado pode ser maléfica.

Um dos fatos mais importantes sobre ela está em sua raiva contida diante do desprezo de Wallace pela vida dos replicantes, ainda que ela seja uma assassina de seus iguais.

A cena em que ela promove um massacre enquanto faz as unhas já está gravada como uma das mais intensas e cruéis no universo de Blade Runner.

O fim da busca.

Diante do inevitável, K leva Deckard até a mulher que pode ser o último vínculo entre ele e sua ex-mulher, Rachel (Sean Young). Deckard e K são tragados para um confronto onde o maior dilema é qual a verdadeira definição de humanidade? O fato de viver é sinônimo de estar vivo?

Sacrifícios são ofertados – direta ou indiretamente – para que a ordem estabelecida por Wallace seja quebrada. Mesmo diante de uma sociedade livre da fome, fica fácil perceber que ainda estão famintos por liberdade e igualdade. O mais controverso nessa trama está no fato de que somente o melhor dos dois lados – humano e replicante – pode trazer novamente a esperança para esses seres tão parecidos fisicamente, porém tão distantes em seus propósitos.

Prequels.

Há, com já disse, três prequels que dão explicações sobre o que ocorreu nos anos escuros e também após o caos. Esses filmes explicam a ascensão de Wallace, o passado de Sapper Morton e o papel dos replicantes Nexus-8 na revolução. Servem como suporte para clarear muitas partes do longa-metragem que, contudo, pode ser visto sem eles.

Notas finais.

Blade Runner 2049 é uma pérola e já pode ser considerado um cult. Trilha sonora tensa, melancólica e lenta dão o tom a toda a trama. Cenas impactantes não só no campo visual como também em sua essência narrativa mostram o apuro e a dedicação de todos para tirar esse projeto do papel.

A reconstrução de Los Angeles e a evolução dela após o caos estão perfeitas. A retomada do questionamento do que é considerado como “humano” está aplicada com maestria e de forma poética. Mesmo Joi, uma Inteligência Artificial, consegue ser mais humana e decente que a maioria dos que surgem na trama.

Parabéns à atuação impecável de Ryan Gosling e Ana de Armas. Eles são o mais improvável e convincente par romântico dos últimos anos. Destaque para a cena em que Luv decreta o fim da vida de Joi. Essa cena foi simplesmente impecável e emocionante.

A direção de Denis Villeneuve é brilhante. Muitos irão questionar o ritmo narrativo lento, talvez fruto de uma rotina de filmes blockbuster cheios de ação, mas é fato que essa narrativa é essencial para a evolução dos personagens, para a trama e da compreensão do público, já que o roteiro não é tão simples quanto parece.

A fotografia e locações são inacreditáveis e dão veracidade ao que vemos na tela.

Conselho para uma melhor imersão: veja o primeiro filme e capte todas as nuances dessa nova obra com um horizonte bem maior.

P.S.: rever Sean Young foi um presentaço para qualquer fã do primeiro filme.

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