Bird Box: uma nova e assustadora visão sobre suicídio e castigo.

Medo é algo que precisa ser construído ao longo do tempo. Caso contrário, você deixará de chama-lo assim para nomear como susto. Medo é uma sensação que retorna todas as vezes que uma situação, lembrança, despertam aquilo que estava escondido, mas jamais perdido.

Bird Box é uma narrativa que se vale do medo para propagar mais medo. O longa da Netflix é inteligente ao extremo ao abordar um dos temores primordiais dos seres humanos: a morte. Mais precisamente há um foco sobre a morte de entes queridos. E, cá para nós, perder uma pessoa amada é talvez a mais terrível das experiências na vida de qualquer ser humano. O filme é baseado na obra homônima do escritor Josh Malerman, também um grande sucesso de vendas e crítica.

Os minutos iniciais do filme dão indícios da aproximação do caos. Acreditem, não estão preparados para “esse” caos. Os suicídios são rápidos, impressionantes e violentos de uma forma incomum. O medo atinge o espectador como um tiro. É possível sentir ele se espalhando, assim como uma hemorragia. Isso piora por causa da rápida amostra do relacionamento entre a protagonista Malorie (Sandra Bullock), grávida, e sua irmã Shannon (Sarah Paulson). Nós nutrimos, ainda que por pouco tempo, a esperança de que a desgraça chegue a elas, porém isso é inevitável. E não se preocupem, pois isso não foi um spoiler. Isso é demonstração de coragem por parte do roteirista Eric Heisserer e da direção competente de Susanne Bier.

Bird Box tem outro ponto interessante, principalmente se levarmos em conta que estamos em um mundo onde as duas maiores religiões do mundo – o islamismo e o cristianismo – definem assim o ato de tirar a própria vida: a morte por suicídio é a condenação da alma, o afastamento definitivo de Deus. Então, o que poderia provocar uma onda de suicídios e, consequentemente, a condenação de tantas almas?

O longa usa do artifício do flashback para nos aproximar do foco central da trama que é Malorie e duas crianças. Por não sabermos inicialmente quem são as crianças e também por termos uma noção do perigo que os ronda, as coisas se tornam ainda mais complexas e assustadoras. Há um intervalo de cinco anos entre o presente e o início do genocídio na cidade de Malorie. Então, por meio dos flashbacks, a diretora nos aproxima do grupo que ficou isolado e tenta sobreviver ao problema. Essa parte é dominada por uma sensação de estarmos presenciando um Big Brother sombrio, onde o BigPhone é o chamado da morte.

O transcorrer da trama oscila entre o passado (onde contemplamos o melhor e o pior dos seres humanos) e o presente (no qual Malorie e suas duas crianças lutam pela vida). Essa alternância fornece elementos esclarecedores sobre a “presença” que incita o suicídio, além de revelar o que ocorreu aos sobreviventes que acompanhavam Malorie.

E por falar em sobreviventes (uma verdadeira representação do melhor e do pior da humanidade), nós agonizamos com a formação de laços entre eles e da forma como alguns desses laços são desfeitos. A história não poupa o espectador do sofrimento infligido a cada um deles, o que nos traz novamente à alusão ao Big Brother, porém com uma grande dose de ironia e dor. Contemplamos a esperança e também tudo aquilo que pode matá-la. É agonizante!

Um dos pontos mais aterrorizantes da trama está no fato de não haver confiança entre as pessoas. Diante do medo do desconhecido, qualquer um pode ser um ameaça e isso é levado a sério por Douglas, personagem de John Malkovich. O decorrer da história comprova que há algo mais forte que a vontade humana, uma força que só assume duas ações: ou mata ou faz com que matem.

Isso não impede que haja momentos mais suaves, onde a fina película da esperança cobre alguns dos personagens. Tom (Trevante Rhodes) é um desses elementos de esperança à trama, mas é na presença das duas crianças que podemos ver o verdadeiro combate entre o medo e a vontade de permanecer vivo. A inocência dos pequeninos é uma fonte de força aos que sobrevivem.

E assim prosseguimos por quase a totalidade da história. Sem esperanças, sem a confiança que caracteriza o convívio entre pessoas. Um pequeno núcleo familiar é o resquício de uma civilização destruída pelo desconhecido, perseguida por essa peste desconhecida (isso me trouxe à memória as 10 pestes que afligiram os egípcios no relato bíblico) que almeja exterminar os humanos da face da Terra. Não há explicações sobre os motivos, não há criaturas sobrenaturais. O que existe é apenas o medo e o suspense que permeiam toda a trama.

Achei coerente uma teoria que se espalhou e mostra elementos que apontam cada um dos personagens como vítimas da depressão, uma das doenças que mais provoca o suicídio no mundo. Ao encararmos a “peste” como essa doença nós podemos traçar um paralelo e ver que há lógica nessa comparação, mesmo que a mesma não tenha sido confirmada pela produção, a diretora ou o elenco. Seja como for, fica o alerta para os males silenciosos e sorrateiros da depressão.

Para encerrar esta análise, preciso apontar também os pontos frágeis da trama. Um deles está na rapidez da mesma (gostaria muito de ver essa trama abordada em série, com mais elementos e mais tempo de exposição das personagens); o outro ponto está no final da história que traz uma ponta de esperança, porém, dentro da minha visão, mostra que os humanos estão condenados, não importa o que façam. Definir se a humanidade é a responsável por essa desgraça universal ou não é uma escolha que caberá ao espectador. Ainda assim, Bird Box é um longa-metragem muito bem feito e que saiu do lugar comum dos já manjados “jump scare”, possessões e outros clichês conhecidos do grande público do terror e do suspense. Ao mostrar um tema complexo como o suicídio, as sequelas para os que ficam, uma visão diferente do Apocalipse e, ainda, o medo unido ao suspense, o filme se mostrou como uma das gratas surpresas de 2018. Não é uma obra perfeita, mas certamente é uma das melhores do gênero desse ano.

 

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