Bingo, o Rei das Manhãs… Pra viver é melhor sempre rir!

Para falar sobre Bingo, o rei das manhãs, vou antecipar minha opinião: esse foi um dos melhores filmes que vi nos últimos anos. Agora, cabe a mim a tarefa de convencê-los da afirmação anterior. Será que consigo?

Ok, estamos no segundo parágrafo e você continuam lendo. Isso, concluo, significa que estão curiosos para saber o que tem de tão especial em Bingo, o rei das manhãs. Obrigado pela confiança… e vamos iniciar o espetáculo!

Por trás da história.

Bingo é um filme sobre o primeiro ator a fazer o Bozo no Brasil. O nome real desse ator é Arlindo Barreto e ele, digamos, não era um artista com o talento em evidência. Seus filmes mais famosos foram pornochanchadas, os tradicionais filmes brasileiros das décadas de 70 e 80 que misturavam humor e sacanagem em doses homeopáticas.

“Sabe qual a menor máscara do mundo? O nariz de palhaço.”

Arlindo foi escolhido por contar com um humor cáustico e inteligente. Sua persistência foi outro ponto fundamental para se sustentar no papel, além de passar pelo crivo do produtor estadunidense responsável por tudo que estivesse relacionado ao Bozo. Arlindo era competente e conseguiu conduzir um programa “ao vivo” que, em seu auge, ficou diariamente por mais de 8 horas direto no ar.

Apesar dos excessos apontados em Bingo, o próprio ator não confirmou o uso de drogas pesadas durante suas apresentações na TV, mas afirmou que, findo o expediente no SBT, sua vida noturna era regada por bebidas, badernas, mulheres e drogas.

Um outro Bingo.

Inicialmente, o papel do Bingo era de Wagner Moura. Este, porém, em função de outros projetos, teve que recusar o papel. Essa é a explicação básica para a inclusão de Vladimir Brichta no elenco. Honestamente, não consigo imaginar outro ator fazendo o palhaço.

Para evidenciar o tom bem humorado da obra e também a eficiência de Vladimir, a Warner preparou um trailer onde Wagner tenta substituir seu amigo. Uma brincadeira divertida e bem interessante que, com um olhar mais atento, reflete uma parcela do próprio longa-metragem, já que a escolha do Bingo foi uma verdadeira operação de guerra.

Vejam o trailer e se divirtam. E, por favor, continuem a leitura. Tem muita coisa boa ainda.

A mãe.

Marta (Ana Lúcia Torre) é um dos pontos de apoio para Augusto (Vladimir Brichta)na trama. Ela é uma atriz cujo passado foi glorioso, onde a fama a acompanhava em tempo integral. Isso, contudo, não foi suficiente para que ela compusesse novas histórias na TV como atriz, restando-lhe a posição de jurada em programas de auditório.

Na vida real, a mãe de Arlindo Barreto foi a atriz e jurada do programa Mercado Internacional de Talentos, conduzido pelo talentoso Flávio Cavalcanti, Márcia de Windsor. Márcia teve uma carreira de sucessos e, tal qual a personagem marta, foi gradualmente sendo posta de lado em produções de maior porte, restando pequenas participações e programas de auditório. Márcia era fumante e consumia três carteiras de cigarro por dia, fato decisivo para que aos 46 anos de idade tivesse um infarto e morresse.

Drogas e outros problemas no palco.

Categoricamente, Arlindo Barreto afirma que jamais se apresentou drogado no palco. Algumas cenas, como aquela na qual ele é ofendido pelo menino em rede nacional e a outra onde a criança pede para ele falar mais alto, são reais. Outras, porém, não. A cena em que seu nariz pinga sangue frente à câmera, durante uma performance ao vivo, não ocorreu… ao menos não no set do programa Bozo.

Os bastidores do programa do Bozo (ou do Bingo, caso assim desejem) são um show à parte. Mulheres, álcool, drogas e uma produtora sofrendo um assédio que, hoje em dia, renderia um processo monstruoso contra o ator.

Pelo que percebi após assistir vários vídeos da época, depoimentos do próprio Arlindo Barreto e textos sobre a produção e bastidores dos programas do Bozo, Bingo mostra um apanhado de vários problemas com os muitos atores que fizeram o Bozo. Isso deu mais dramaticidade à obra.

Retratos de uma época.

A produção de Bingo foi extremamente competente ao mostrar – com um grau de fidelidade absurdo – a realidade da época onde se passa a trama. Desde o início onde fatos são mostrados em uma TV antiga em P & B, passando pela condução de um Opala com um menino (o ator Cauã Martins que faz o filho de bingo, Gabriel) sem cinto de segurança, até o uso indiscriminado de bebidas e cigarro na frente de crianças. Era uma época onde o politicamente correto era algo desprezado, um período no qual a realidade era dura, mas muito divertida.

São vários os fatores que destacam a excelência na pesquisa dos produtores. Roupas da época, fumo em qualquer lugar, propagandas antigas, fitas K-7, trilha sonora, o famigerado telefonema ao vivo e muito mais.

O Pacto.

Bingo, o rei das manhãs não faz qualquer esforço para esconder alguns fatos e realidades da época do lançamento do programa do Bozo. Esses fatores foram primordiais para agravar comportamentos e também para transformar um improvável programa em sucesso nacional.

O ponto primordial de Bingo está no desejo por fama de Augusto Mendes. Ele é um ator mediano, cheio de esperanças de sucesso e ansioso em comprovar para a mãe que tem o talento natural dela, uma ex-atriz de sucesso.  Ao se deparar com um teste para palhaços em um programa próprio, Augusto enxerga a oportunidade que esperou a vida inteira. Mas, acreditem, nada vem fácil.

Após um inacreditável teste, Augusto recebe a oportunidade para ser o Bingo. Há, contudo, uma cláusula contratual que o impede de revelar sua identidade ao público. Esse é o ponto central da trama, principalmente se levarmos em conta que esse anonimato afeta o próprio ator e, sobretudo, seu filho que vê o sucesso distanciá-lo cada vez mais de seu pai.

Ser amado por todos e não ter tempo para dar amor ao próprio filho é um erro que cobrará um alto preço a Augusto. Esse pacto não pode ter resultados positivos, ainda mais quando a natureza humana e os prazeres que o dinheiro e a fama trazem se sobrepõem ao convívio familiar.

Esse filme sobre o palhaço pode ser visto por crianças?

Não. Bingo não é um filme recomendado para crianças. Há uma carga emocional muito forte do meio do filme para o fim. Já o começo é um show de humor e nostalgia que fez os espectadores, inclusive eu, rirem como há muito não via. Cada nova cena é um presente para o público, seja através da alegria e da sacanagem refletidas no Bingo e no cameraman Vasconcelos, interpretado pelo hilário Augusto Madeira.

As emoções fluem em altas doses durante todo o longa. Sexo, bebidas, drogas, mulheres, assédio, depressão, solidão, traições, abandono da família e outras coisas dão a essa obra uma profundidade inesperada. Pais irão sair refletindo sobre a relação com seus filhos; inconsequentes irão parar e pensar sobre seus atos (ainda que nada façam para mudar, provavelmente). Seja como for, ninguém sairá igual ao que era antes de começar a ver Bingo.

Quer diversão, drama, realismo, sarcasmo, sacanagem, humor e inteligência em doses brutais? Esse filme é para você!

Atuações.

O elenco é uma das forças do filme. Atuações competentes e convincentes são vistas do início ao fim da trama. Destaque para Leandra Leal que interpreta Lúcia, a diretora do programa. Mas não paramos aqui. Augusto Madeira está sensacional como Vasconcelos, amigo e parceiro do Bingo. Também têm ótimas performances a atriz Ana Lúcia Torre (a mãe de Augusto Mendes), Tainá Miller ( a ex-mulher de Augusto) e Cauã Martins que, apesar da pouca idade, mostrou competência como o filho de Augusto e uma das maiores vítimas do palhaço.

Emanuelle Araujo é a Gretchen do cinema, empolgando espectadores com sua dança e beleza. Ah! Empolgando também a molecada que, naquele tempo, não tava nem aí para o politicamente correto.

Agora, indubitavelmente, o ponto mais alto quando o assunto é interpretação foi a atuação de Vladimir Brichta. O ator oscilou entre o Coringa de Heath Ledger e o Homem que Ri. Ele foi do 0 a 100 em menos de 3 segundos, dando vida e veracidade ao personagem. Contudo, cabe destacar que ele não se restringiu ao palhaço em si. Como pai, sua atuação emociona e agrada, entristece e traz compaixão. Enfim, Brichta merece muitos prêmios pelo esforço e os resultados alcançados com sua atuação. Impecável!

Coadjuvantes que não ficaram esquecidos.

Rever personagens que marcaram época como o Garoto Juca e a Vovó Mafalda, além dos fantoches e toda a trupe típica de circo foi impressionante e nostálgico.

Outro ponto que merece elogios é a inclusão da história do aprendizado de Augusto, o Bingo, com palhaços circenses verdadeiros. Nessas passagens, fica nossa homenagem ao talentoso ator Domingos Montagner, um dos responsáveis pelo aprimoramento no palco do Bingo. Domingos faleceu em um trágico acidente.

E por falar em coadjuvantes, que tal citar a ideia genial de adaptar os nomes de emissoras e astros. A Rede Globo virou a Mundial, o SBT (antiga TVS) foi chamada de TVP e até a Xuxa teve seu nome alterado para Lulu. Os logotipos das emissoras estão parecidos, dando indícios de a qual rede se referem.

Nota final.

Vou reforçar o que disse no início do post: vejam esse filme, prestigiem o longa que teve a coragem de mostrar um período da nossa TV que ficou marcado na História. Atuações fortes, fotografia linda, direção impecável, elenco escolhido com maestria, roteiro perfeito e a reconstituição ímpar de uma das mais prolíferas e estranhas fases da cultura e da TV brasileiras.

Poderia ficar horas tecendo elogios, mas a melhor forma de comprovar o que disse é indo assistir a Bingo, o Rei das Manhãs. E podem ter certeza de que sairão já com saudades desse “revival” inesquecível.

P.S.: o diretor Daniel Rezende foi indicado ao Oscar por “Cidade de Deus”, foi montador de “Tropa de Elite 2” e “Diários de Motocicleta”. O roteiro é de Luiz Bolognesi (“Bicho de Sete Cabeças”, “Uma História de Amor e Fúria” e “As Melhores Coisas do Mundo”) e a fotografia de Lula Carvalho (“As Tartarugas Ninja”, “Robocop”). Que equipe!

P.S.2: eu vou rever esse filmaço, não tenham dúvidas.

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