Mais um conto de terror: “Atormentado”.

Por: Franz Lima

Muitos estranharam aquele homem que corria desvairadamente. Poucos notaram que seus olhos estavam injetados de sangue, fruto do esforço e do pânico. Só ele sabia o que estava ocorrendo.

Suas pernas começaram a fraquejar mas seus instintos determinaram que continuasse a correr. Parar diante do que o perseguia do que o perseguia era, certamente, uma sentença de morte. Foi esse o destino de sua mulher, Maria, e de seu filho com apenas 8 meses, José. Eles foram assassinados brutalmente, com absoluta ausência de piedade. José foi o primeiro…

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 – Mulher, o bebê está chorando. Vai ver o que ele quer. – determinou João, extremamente ocupado diante da TV, onde passava o futebol de domingo.

Nada. O silêncio de Maria incomodava, quase como uma afronta.

João esticou o pescoço e buscou enquadrar a mulher em seu campo visual, com total fracasso.

– Maria? – disse, já com raiva pela ausência de resposta.

O som de passos ecoou no antigo piso de tacos.

– Que foi? – perguntou a mulher, assim que pôs a cabeça na entrada da sala. – Por que essa gritaria?

João não gostava do tom de voz rebelde dela, mas era preciso paciência. Não havia motivos para tumultos em um dia de jogo e, principalmente, quando seu time estava ganhando.

– Vê o que tá acontecendo com o moleque. O choro já tá me incomodando.

Ela olhou para ele e imaginou os motivos para que ele mesmo não fizesse o que pedia.

– Já vou. Vou apenas abaixar o fogo da comida.

Ela se afastou e voltou para a cozinha.

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Diante da escadaria, poucas alternativas restavam. Ele poderia sacar a faca e encarar o que o perseguia ou, como sua mente urrava, apenas correr com todas as forças. Mesmo sentindo o frio do metal junto ao corpo, algo lhe dizia que isso de nada adiantaria.

Pôs o pé no primeiro degrau e ouviu o rosnar. Não era um animal, era o rosnado de um ser humano totalmente fora de si, incontrolável.

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As oscilações entre a alegria total e o ódio eram normais. Era impossível assistir ao jogo sem enlouquecer. Mesmo o barulho do menino pouco atrapalhava.

Maria passou correndo em direção ao quarto do bebê. Ela ainda não entendera o porquê do escândalo do marido, porém era melhor evitar discussões.

Há horas em que um dos lados tem que ceder. 

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Ainda que a dor fosse enorme, o medo era maior. Ele olhou para cima e subiu. Cada degrau era uma lança que perfurava seu joelho, pois ele tinha uma ponta no lugar da rótula. Deveria operar, porém o medo o impedia e era um medo infinitamente maior o que agora o obrigava a quase saltar os degraus.

Entre lágrimas e o som de seus dentes rangendo, João pensou que a dor poderia ficar para segundo plano…

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O ataque já indicava que sairia um novo gol. Era felicidade demais e nada o impediria de gritar e comemorar. Três rodadas sem vitória eram algo péssimo e, hoje, o ciclo estava sendo quebrado.

A televisão iluminava seu rosto quando um grito agudo e desesperado se misturou ao seu grito de gol.

O coração disparou pela junção das duas emoções: a alegria e o pavor.

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Foi quando atingiu o 13º degrau que ele sentiu. Mãos poderosas o impulsionaram para baixo, forçando seu joelho a girar sobre o eixo. Ele teve a nítida impressão de algo se rompendo, enquanto o rosto se chocava em um degrau.

Seu grito ecoou entre os mundos.

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O copo com a bebida foi arremessado. João tateou e encontrou rapidamente a faca, partindo em seguida para o quarto. O coração batia com tanta força em seu peito que os olhos estavam embaçados. O suor brotava como se estivesse um calor de 50 graus.

O som do grito cessara. Apenas um soluçar era possível de ser escutado. Um soluçar que emanava uma dor ainda não sentida por qualquer pessoa. Havia pesar e morte no ambiente e, nesse clima, João encontrou sua mulher e filho.

Demorou uns poucos segundos até que ele compreendesse o que ocorria. Maria tinha nos braços o bebê. José estava mole, o corpo pendendo dos braços da mãe, como se estivesse desmaiado. Mas não havia dúvidas sobre a verdade: ele estava morto.

– Maria, o que aconteceu? – inquiriu o pai da criança, já tomado pela emoção. – Fale, mulher. Fale!

Maria virou-se e ficou de frente para o marido. João olhou incrédulo. Os pés começaram a ficar frios. Ele sentiu que iria desmaiar caso não se controlasse.

Nos braços da mulher estava mesmo o menino. Morto. O pescoço totalmente esmagado por mãos fortes. A língua pendia da boca e o rostinho estava roxo, quase negro.

– Que porra é essa? – João perguntou, mesmo sabendo o que era.

– Eu não pude evitar…

Sem pensar um único segundo, agindo por puro instinto, ele a esfaqueou. A boca esboçou um grito que foi imediatamente interrompido por um corte na garganta. O corpo do menino caiu com um baque seco, tétrico, no chão. A mãe esticou as mãos em direção de João e, como conseqüência, um dos dedos foi decepado.

Passaram-se longos minutos enquanto o outrora feliz torcedor chamado João contemplava a morte lenta e dolorosa da mulher que lhe dera o seu primeiro filho. 

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Com alguns dentes quebrados e uma fratura exposta na perna, João rolou pelos degraus que restavam. A batida provocou um som forte. Sua boca emitiu um gemido abafado. Ele abriu os olhos e viu muitas pessoas que contemplavam, impassíveis, o ‘acidente’. Todos direcionaram os olhares para ele, porém havia algo errado, não havia brilho. Todos estavam mortos. Transeuntes em um verdadeiro cruzeiro de almas.

A tentativa de levantar só confirmou seus temores. Ele não poderia correr ou andar, tal foi o estrago na perna. A visão do olho direito também indicava estar prejudicada. Mas escapar dali era uma garantia de sobrevivência. Seus sentidos estavam todos alertas, mostrando que era vital sair daquela situação.

Não havia mais tempo. Os mortos voltaram a caminhar, pois sabiam que o que viria era proibido a eles. Os sussurros eram quase um lamento, uma prece para um futuro companheiro deles. 

Apoiando a mão no chão, João tentou arrastar-se. Algo, repentinamente, agarrou sua perna boa e o arrastou. Esta mesma força que o aprisionava aproximou-se e, com a voz mais assustadora e fria que ele já ouvira, a sentença foi anunciada: morra.

O que ocorreu a seguir foi muito próximo ao desossar de um porco. Um porco vivo. Articulações retorcidas, pele cortada, dentes arrancados e uma dor que somou todas as dores já provocadas pela humanidade. A João não fora concedido o benefício de uma morte rápida. A entidade tocava o coração dele e o reanimava com um choque. 

– O que eu fiz? – gritou o atormentado homem diante do suplício. – Deusssssss, não quero mais sofrer. Por favor, me mate. – dizia enquanto sentia novos pedaços sendo arrancados. 

A força maligna riu. João chorou. A morte se pôs entre eles e, finalmente, a vida do homem que viu seu filho ser sufocado, cessou.

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Os jornais noticiaram o fato com estranheza. Mesmo os mais sedentos por sangue recuaram diante do macabro espetáculo. Apenas um documento no bolso do morto o identificava. Havia sangue, órgãos e ossos espalhados por mais de 8 metros. Era uma verdadeira carnificina que chocou a opinião pública. Muitos passaram a se questionar sobre os motivos que levaram alguém a cometer um crime tão bárbaro. O que provocou tanto ódio contra um cidadão comum?

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As investigações duraram longos meses. O temor sobre uma nova investida do assassino era tamanha que, naqueles dias, ninguém se atrevia a andar sozinho ou transitar na alta madrugada. Um fato revelado chocou tanto quanto a morte do homem e o encontro de sua família também assassinada em casa. As investigações provaram que João era um assassino frio e dotado de crueldade extrema. 

Criminosos em todo o Estado temiam o matador. João tinha em sua ficha criminal apenas uma prisão por roubo à mão armada, mas diários e verdadeiros relatórios encontrados na sua casa comprovaram que ele matou mais de 45 crianças em menos de uma década. Todas espancadas, estupradas, torturadas e, em um ato final de covardia, devoradas vivas. Ossadas estavam enterradas em vários pontos da cidade, devidamente mapeados. Fortes indícios levaram a crer que o matador de João era o parente de uma das vítimas, alguém que enlouqueceu diante da loucura de saber que um ente querido fora fria e covardemente assassinado.

Rapidamente a opinião do público passou a idolatrar o matador de matadores. A pesquisa forense também concluiu que João estrangulara seu filho e esfaqueara a esposa, num gesto final de insanidade.

Este foi o fim de um homem que viveu para provocar o mal. Um fim justo.

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João ficou o equivalente a anos em um local onde a esperança jamais chegou. Milhares de pessoas transitavam em um ritmo lento e torturante. O som do arrastar de pés era incessante. Os olhos do predador foram arrancados e costurados atrás de sua cabeça, pendendo quando ele movia o crânio. Nas órbitas vazias, vermes faziam morada. A boca fora perfurada por inúmeras lascas de madeira, criando piercings sangrentos, infeccionados. 
A cada instante uma criança se aproximava e mordia um pedaço do homem. Os dentes eram pequenos, serrilhados e cortantes ao extremo. O ódio nos pequeninos dava-lhes mais força na mordida, aumentando o estrago. Assim passavam-se os dias para o torturador. Mas, pensava ele, pelo menos sua mulher e filho estavam em um lugar melhor.
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Em um dia do tempo esquecido, João foi despertado de seu longo sono de cinco minutos. Uma nova criança escalava-o, exibindo um pescoço tão fino que era impossível sustentar aquela cabeça, mas isso não parecia mudar nada. Os dentes – que não deveriam existir – eram pequenos pregos, uma infinidade deles. O bebê deitou-se sobre a barriga de João e sorriu, segundos antes de iniciar o banquete. Ele tentou se desvencilhar da feroz criança e foi impedido por um cordão de vísceras. Intestinos e mãos o enlaçaram. A face de Maria surgiu, pálida como só um cadáver pode ser. Ela também sorria. Enquanto o bebê mastigava, a jovem morta apertou o abraço e disse-lhe: – Finalmente nossa família ficará junta. José o devorará, eu devorarei José e os vermes comerão minha carne. Mas não se preocupe… o ciclo sempre recomeçará. Nós o amamos.
Seu grito ecoou entre os mundos.

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