Aquarius: Clara, o tempo e o mar. Dois navegantes no mesmo barco.

O filme começa com a música Hoje do Taiguara, que já nos deixa atentos sobre a importância que todos os ontens têm para o despontar dos dias novos – que de alguma forma, sempre ficam velhos – : ”Hoje trago em meu corpo as marcas do meu tempo. Meu desespero, a vida, num momento. A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo”  Em Aquarius, o tempo é um personagem que persevera diante de todas as contrariedades pela vida de sua personagem principal, Clara (Sônia Braga). Clara deseja proteger o tempo. Ela mergulha nas ondas do mar de Boa Viagem e nada contra a profusão de fortes correntezas. O mar é um espaço colossal, a gente sabe. Mas Clara o atravessa. Sem pausas e sem naufrágios. Sua firmeza vem da afetividade que tem por suas memórias. E por elas, ela navega.

Em Aquarius, o passado é uma ponte viva e necessária, que durante a sua passagem faz com que seus resquícios atuem na montagem de cenas do momento de agora e do momento futuro. O pretérito não é uma página virada. Não é algo que está, é algo que é: presente dentro do presente. Intenso. Clara, que viveu – e ainda vive – a maior parte de sua vida no último prédio antigo de Boa Viagem, vê-se pressionada por uma grande construtora que pretende demolir o prédio antigo para construir um novo. Clara não quer abrir mão do seu lugar por condição nenhuma. O prédio é um lugar emocional que habita em Clara mais do que é habitado: é ali que mora a sua história. E isso é mais caro que tudo.

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O engenheiro Diego não entende como uma mulher aposentada, aos 65 anos, recusa uma proposta irrecusável de dois milhões de reais em troca de um prédio velho. A figura de Diego representa aquele perfil que chega sorrateiramente para tomar o seu espaço: educado, compreensivo, sorridente, bem vestido (o ”passivo-agressivo”) mas que por trás desse traje, arquiteta passo a passo de um golpe obscuro enquanto regozija, dá bom dia e tapinha nas costas. O personagem de Humberto Carrão é um arquétipo de ”homem de bem” renomado e facilmente identificável em nosso país, que diante de um não inquestionável usa de golpes baixos, baixíssimos, por considerar absurda a ideia do poder e do dinheiro não pagarem por tudo. E é essa a congruência selvagem da construtora que deseja demolir o Aquarius: o dinheiro tem grandeza o suficiente para pagar por esse prédio, inclusive pelas recordações de toda uma vida que se concentram nele. Se o dinheiro não pode pagar, tudo bem. O poder usa de seus mecanismos sórdidos para destruí-lo em silêncio.

O confronto é posto entre Clara e Diego. Duas forças desiguais que se defrontam. Uma grande empresa contra uma mulher e sua história. Uma, faz da memória viva a bandeira absoluta de sua resistência e existência. O outro, cego diante de qualquer humanidade, não consegue enxergar o espírito íntimo das coisas, e essa é sua maior mediocridade. Há em Clara muita delicadeza, mas pouca fragilidade. Há força em seus gestos e palavras. Clara me fez crer que vale à pena comprar as brigas – ainda que soem loucas e incoerentes para o ouvido de todos os outros que existem na terra -,  e renunciar por nossos desejos mais cálidos não pode ser jamais uma possibilidade em questão. É preciso aumentar o som mais alto que o som do vizinho que quer nos incomodar. É preciso chegar em casa depois de um fora e não se sentir insignificante, mas sim soltar os cabelos e dançar ao som de Roberto Carlos. É preciso lutar com unhas e dentes contra todas as forças contrárias por maiores que elas sejam. Pois por tudo aquilo que tem valor e afeto, faz valer a vida. É por elas que o coração vive, vibra. Vale a luta.

Clara é uma mulher de 65 anos. Carrega em sua figura e no universo que a rodeia as marcas do seu tempo: em seus cabelos longos, na cicatriz do seio esquerdo ocasionado pelo câncer,  em seus discos, em seus livros, em seus filhos, amigos, nos álbuns de fotografia, na pele, no coração, na cabeça, e nos olhos sempre cintilantes ou comovidos com algum instante de beleza – que com toda a certeza, ela guardará na memória -. Clara é uma completa catarse. Hoje, trago em meu corpo o que aprendi com Clara: mergulhar no mar colossal desprezando  sua grandeza, sem me afogar. E não naufragar nunca.

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