Abordando o autismo com coragem: “Em um mundo interior”.

Em um mundo interior é um documentário que precisa ser visto, tenha você ou não o problema do autismo na família. Por que? Simplesmente por ampliar os horizontes de um assunto que a sociedade faz questão de esconder, omitir. Há vários grupos que lutam pela inserção do autista em nossa realidade, isto é, a preparação do portador da síndrome na sociedade e também o preparo da sociedade para recepcionar este ser especial.

Ser autista (ou Down, Albino ou possuir qualquer alteração física ou mental) não é uma sentença de morte, uma exclusão definitiva do indivíduo de nosso meio. Mas é fato que compreender isso é algo extremamente difícil, mesmo nos dias atuais. E falo sobre esse assunto com conhecimento de causa pois, há apenas 8 anos, entrei em pânico ao saber que meu filho era autista (hoje diagnosticado com Síndrome de Asperger moderada).

Questionei sobre tudo: se aquilo era um castigo, onde errei, o que seria do futuro dele… foram tantos os temores que até minha própria saúde decaiu. Felizmente descobri que meu menino é e sempre será um presente. Inteligente, capaz, educado e repleto de outros predicados, tudo que ele representa é um tapa na cara para aquele pai de anos atrás, aquele que temia pelo futuro.

Há, porém, casos mais graves que transformam pais em “pais em tempo integral”. As limitações dos filhos passam a ser as metas a transpor por parte dos pais. Ver um filho que não falava, finalmente balbuciar o que quer que seja é, verdadeiramente, uma vitória. Chorar com os primeiros passos de quem não podia andar: isso é algo a ser plenamente comemorado.

Eu assisti “Em um mundo interior” (dirigido por Mariana Pamplona e  Flávio Frederico)por recomendação da amiga e jornalista Graça Paes. Não sei se cheguei a comentar com ela sobre a situação do meu filho, mas o fato é que ela me apresentou esse documentário que veio para me lembrar do quanto tenho a agradecer e, sobretudo, do quanto preciso fazer para ajudar pais e familiares de pessoas especiais. Afinal, meu conhecimento e experiências só têm validade quando compartilhados e aplicados.

É por isso que escrevi esse review. É por isso que peço que compartilhem ao máximo o que aqui exponho.

O documentário mostra as histórias de crianças como Roberto (10 anos, morador do Recife), Igor (4 anos, morador de Porto Alegre), Isabela (10 anos, reside em São Paulo), Mathias (3 anos, também morador de São Paulo), Eric (18 anos, São Paulo), Julia (7 anos, mora em São Paulo) e outras com histórias parecidas, porém nunca idênticas. Afinal, o TEA (Transtorno do Espectro Autista) é muito variado e há graus diferentes de autismo, desde os mais simples – onde incluo meu filho – até os muito complexos que abrangem desde a ausência de comunicação verbal até a agressão a si mesmo.

Achei também interessante a fala de um especialista que diz: “A proporção é de 4 a 5 meninos para cada menina. Antigamente admitia-se que acometia 4 pessoas em cada 10 mil. Hoje, admite-se que ela (a síndrome) esteja presente em cerca de 1% da população mundial, ou seja, o aumento foi exponencial… Hoje quando você fala no autista de bom rendimento que é funcional, que trabalha ao seu lado, jamais ele seria considerado autista há 30 anos atrás.”

O documentário é imprescindível para quem tem casos na família e também para quem não tem. Isso se dá por causa da necessidade de aumento da compreensão por parte dos que jamais viram ou ouviram falar sobre o autismo. Do mesmo modo, pessoas que têm autistas próximos precisam assistir para ampliar os conhecimentos e ver que há inúmeros casos parecidos ou mais complicados que o seu, porém todos podem ser melhor administrados com conhecimento, paciência e força de vontade. O medo que atinge quaisquer pais de autista é praticamente igual: o que o futuro reserva para meu filho? O que acontecerá quando eu não mais estiver ao lado dele?

Gostei demais da abordagem sobre os pais, já que eles são o principal suporte para as crianças. Detalhar a luta desses pais e mães para dar qualidade de vida aos seus filhos é emocionante. O mais importante está na abordagem mais crua do documentário, onde é permitido ao espectador ver o lado mais suave de algumas crianças e também o extremo destas, já que nem sempre a criança autista estará passiva. Momentos de explosão, teimosia ou negação não são incomuns e isso eu já presenciei não apenas com meu menino. Vi pais se esforçarem para manter a calma e o foco diante de filhos que, para o público externo, são apenas manhosos ou mal-criados. É uma luta diária que varia de intensidade conforme o grau da síndrome que a criança possui.

Um pouco do cotidiano das crianças foi registrado, inclusive por elas mesmas, o que serve para que possamos identificar similaridades e enxergar soluções para nossos próprios entraves diários. Fica visível que há uma dificuldade maior por parte de todos para entender esse problema, principalmente por não haver na aparência de pessoas autistas (exceto expressões faciais e corporais nos casos mais radicais) que indiquem a síndrome. Vamos somar a isso a divulgação insuficiente, responsável pela confusão entre pessoas com problemas mentais graves e autistas. O comportamento naturalmente isolado dos que têm a síndrome não é sinônimo de falta de inteligência e potencial.

Destaque sobre a interação escola-família.

Esses são pontos importantíssimos na vida da criança autista em desenvolvimento: as presenças da escola e da família. O papel da família é imprescindível para que o portador do Transtorno do Espectro Autista (seja qual for o grau) possa se sentir acolhido e amado. Lutar pela vida e pelo crescimento intelectual, pelo preparo para uma sociedade ainda indiferente ao tema, é algo que se inicia no seio familiar.

Por sua vez, a escola – na figura de professores, terapeutas ou cuidadores – é outro instrumento de inserção na sociedade e uma ferramenta indissociável da educação da criança autista. Pais e parentes precisam de uma “pausa” nesse cuidado diário e extremo à criança. Em outras palavras, precisam ter alguém para dividir a árdua tarefa de educar essas pessoas especiais que, geralmente, são complexas em suas atitudes, palavras e comportamento.

Sem a parceria acima citada, muitas pessoas chegariam a um extremo no qual, ao invés de cuidadores, se tornariam os alvos do cuidado.

Direitos.

Fiquei feliz ao ver a citação da Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e estabelece diretrizes para sua consecução. Pode parecer brincadeira, mas muitos parentes de portadores de TEA não sabem que o indivíduo tem direito, por exemplo, ao transporte público gratuito com acompanhante. No Rio de Janeiro usa-se o Bilhete Único Especial.

Há o direito à aquisição de veículo zero km por parte do responsável pelo veículo com isenção de alguns impostos, o que promove uma economia em torno de 25% ou pouco menos. Para tal, necessita-se de uma autorização judicial para a venda, com laudo preenchido e assinado por um médico, um psicólogo e o representante de serviço médico vinculado ao SUS.

É válido ler na íntegra a lei. O link acima direciona para o site do Planalto.

Existe, ainda, a Lei nº 13.370, de 12 de dezembro de 2016, que trata da redução da jornada de trabalho para aquele que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência de qualquer natureza. Essa lei, porém, engloba apenas funcionários públicos que deverão requerer tal direito junto ao órgão gestor. Não há necessidade de compensação do horário, conforme a nova descrição.

Vitórias.

Eric, neste documentário, é o mais velho, o que já é um adolescente. Os temores que nós, pais de crianças novas temos, já não são novidades para os pais de Eric. Namoro, viagens, festas, o ensino médio, o convívio com outros adolescentes. Por tudo isso ele (e seus pais) já passaram. O jovem é um estudante dedicado, um bom ator, possui talento para dublagem, nada, pratica karatê e leva uma vida normal. Tudo isso foi alcançado pela persistência da mãe e da irmã, as melhores amigas dele e, certamente, os pilares para o crescimento físico e mental do garoto.

Vê-lo exercendo tantas atividades, conversando com razoável desenvoltura é, sem dúvida, uma grande vitória e uma esperança a mais para os pais de crianças autistas.

Esperança.

A palavra-chave deinstitui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e estabelece diretrizes para sua consecução.sse documentário é essa: Esperança. Pais, amigos e parentes dessas crianças especiais (em todos os sentidos) têm a forte esperança de um futuro melhor, de uma sociedade mais preparada para abraçá-los e com eles conviver, de um sistema de saúde que promova o bem-estar para todos, de governos preocupados com suas limitações e dispostos a investir em formas de minimizar essas pequenas barreiras. Esperança é o que está visível nos olhos de cada pai, mãe e cuidadores dos autistas retratados no documentário.

Assim, encerro esta matéria com um vídeo repleto de crianças especiais (algumas são portadoras de síndromes, outras não) feito pelos educadores e terapeutas do Instituto Tocando em Você, um centro de terapias e estudo voltado às crianças, jovens e adultos que têm algum tipo de síndrome. Na verdade, o Tocando é hoje um lar inclusivo para dezenas de pessoas, incluindo pais, amigos e os próprios alunos da instituição.

Maiores esclarecimentos: Instituto Tocando em Você. Rua General Roca, 362 – Tijuca – Rio de Janeiro. RJ. Tels: (21)  2568-5451 e (21) 2567-4378.

Peço encarecidamente que divulguem o trabalho dessa equipe maravilhosa, pois o vídeo abaixo só foi possível com a dedicação ininterrupta de familiares e dos integrantes do Tocando em Você. Eu me orgulho muito dessa prova incontestável de que os limites existem, mas podem ser superados.

Mais apoio do Governo.

O que faltou aparecer neste documentário é o apoio do governo. Isso talvez seja fruto direto da ingerência de (poucos) hospitais e centros de terapias que existem no país. Assim como outros problemas de saúde pública, também estão entregues à própria sorte os autistas e seus parentes. Não fosse a iniciativa privada e algumas instituições federais, a situação estaria bem pior.

No tocante à educação dessas pessoas, poucas são as escolas realmente preparadas para receber e cuidar delas. Maiores investimentos e atenção ao assunto são necessários com urgência, visto que a cada ano aumenta o número de autistas no mundo.

Casos extremos e a cura pela paciência e o amor.

Um dos casos retratados quase ao final do filme é muito chocante. Ele mostra um jovem trancado em uma jaula, a última alternativa de uma mãe desesperada que já viu seu filho cegar um olho por causa de seu comportamento violento. A contenção mecânica ou química (sedativos) são recursos de quem não vê mais esperança para o caso do filho, seja por desconhecimento ou por falta de dinheiro para bancar um tratamento, uma cuidadora ou outra alternativa. Esse é o caso de Breno que esteve “trancado” por 15 anos.

A situação passou a mudar a partir da inserção em sua rotina dos voluntários da Associação Afeto. Acreditem: ele pôde – com muito trabalho – sair e ir a uma praia sem pôr em risco outras pessoas ou ele mesmo. Isso é uma vitória incontestável.

Onde assistir.

O filme está em cartaz no Rio de Janeiro no Cinemark Barra Downtown e Centro de Artes UFF.  Consulte os horários e não perca essa obra esclarecedora e interessantíssima. 

O link para as sessões na rede Cinemark é esse: https://www.cinemark.com.br/filme/em-um-mundo-interior

Recomendações.

Deixo aqui algumas obras pertinentes sobre o autismo, Down e outras síndromes. Essas produções servirão para ampliar horizontes e ajudar na compreensão das nuances de cada uma delas.

Atypcal – Série lançada pela Netflix que conta a vida de um jovem de 18 anos, autista, diante da difícil busca por uma namorada e o amor. Os problemas familiares e outras complicações são abordadas com muito humor, sem que isso deixe de lado a seriedade que o assunto pede. Clique no link para acessar nossa análise.

A HQ “Não era você que eu esperava”, de Fabien Toulmé. A história mostra os altos e baixos de uma família que tem uma filha com síndrome de Down. A coragem está em mostrar que nem tudo foram flores para eles, desde a rejeição inicial até a compreensão de que não se trata de uma maldição, mas apenas uma peculiaridade que torna a criança diferente visualmente das outras, sem que isso diminua aquilo que ela pode se tornar ou o amor que a família e amigos sentem por ela. O link direciona para a Amazon que está com um preço justo pela obra (também disponível pela plataforma Social Comics)

Humor azul: o lado engraçado do autismo, de Rodrigo Tramonte. O autor é autista e descobriu tarde que era portador da síndrome. Com muito humor e conhecimento de causa, Rodrigo mostra peculiaridades comuns aos autistas e ensina que é possível conviver de forma harmoniosa com pessoas portadoras da síndrome.

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