A filosofia de uma pacata cidade – “Dogville” (peça)

Uma cidade pequena, formada por poucos moradores e sem muita estrutura hierárquica, hipoteticamente seria liderada pelo bom senso e daria azo para muitas reflexões filosóficas, como é o caso de Dogville.

Na verdade, “Dogville” é o nome do filme de 2003 escrito e dirigido por Lars Von Trier, que recebeu uma adaptação para os palcos brasileiros idealizada por Felipe Lima e dirigida Zé Henrique de Paula.

A peça “Dogville” entrou em cartaz em 2018 e já fez turnês pelo país, a celebração dos 02 anos de peça estava sendo planejada há algum tempo, porém teve que ser adaptada por causa da atual pandemia. A produção decidiu fazer um compilado de gravações da peça, com o variado elenco que fez parte da história e algumas imagens de ensaios e pequenas entrevistas com o elenco e a equipe de criação e produção.

Essa celebração se deu nos dias 02 e 03 de novembro pelo canal no YouTube da produção, com direito a um bate papo com parte dessa equipe.

Para contextualizar, vamos ao resumo da história.

Dogville é essa pequena cidade, com pouquíssimos habitantes, dentre eles Tom Edison Jr., que se achava meio que escritor meio que filosofo, ele tentava ser o guia da moral da cidade, o conciliador dos conflitos e solucionador de problemas.

Os principais habitantes (para não dizer os únicos) tinham características peculiares, como a hipocondria do pai de Tom, a insistência de um tal de Jack em dizer que não era cego, a soberba de Ben, só porque era motorista de carga, e assim por diante. Contudo, no conjunto, eles pareciam ser boas pessoas.

Em uma noite, quando eles estavam reunidos na igreja, em uma das frequentes reuniões discutir possíveis problemas, uma jovem aparece fugindo de algo perigoso, provavelmente da cidade grande, Grace. Ela não podia voltar de onde veio e Tom a convenceu de que fugir seria pior, então ela ficou em Dogville por aquela noite.

Ela se encantou pela cidade e quis ficar mais, sentia-se segura ali, mas sua presença poderia ameaçar a paz do lugar e, por isso, os habitantes tiveram que votar para decidir se era prudente, a concordância por essa decisão deveria ser unanime. Isso não iria acontecer caso Grace não conhecesse ninguém ali, ela teria que mostrar que era de confiança.

A missão era difícil porque Grace não poderia falar do que estava fugindo, mas foi concedido a ela um prazo de duas semanas para mostrar que era de confiança, haveria nova assembleia municipal depois desse prazo e, nesse momento, decidiram de vez se ela ficaria ou não. O que Grace deveria fazer em troca era oferecer mão de obra, ajuda a quem precisasse.

No dia seguinte ela passou de casa em casa oferecendo ajuda, mas o povo da cidade não estava acostumado a ter ajuda, então deu pouco espaço para ela. A primeira a ceder e aceitar ajuda foi Ma Ginger, que plantava groselhas e tinha uma lojinha. A partir daí a ajuda de Grace foi sendo aceita, assim como ela mesma. O único que ainda não a aceitava era Chuck, mas até ele concordou com a presença dela depois das duas semanas.

Tudo parecia ir bem, inclusive entre Grace e Tom, que confessaram estarem apaixonados um pelo outro. Só que o fato de Grace ser fugitiva não poderia ser esquecido, tanto era que a polícia do condado passou pela cidade distribuindo cartazes de procurada, com a foto de Grace estampada.

Isso alertou todos os habitantes, que até concordaram em continuar com Grace, mas ela deveria trabalhar mais horas e receber uma remuneração mais baixa, isso sob a justificativa que todos se sentiram mais seguro. E daí as coisas só pioraram, a cidade e seus habitantes começaram a mostrar sua pior face, explorando-a o quanto podia.

Grace não aguentava mais, então pediu ajuda a Tom para fugir dali, e ele aparentemente aceitou ajudar, pagando Ben para dar uma carona para ela. Mas nenhum dos dois realmente ajudaram, tudo que fizeram foi a fazer parecer culpada por coisas ruins que estavam acontecendo, levando-a de volta para a cidade e a prendendo por lá.

Acontece que Grace não era exatamente quem eles pensavam que era, nem que ela mesma pensava. Ela estava fugindo do pai, líder de uma quadrilha de bancos, atitude que ela criticava fortemente. Ele foi até Dogville procurando por ela, lembrando-a que a liderança dele seria dela um dia, ela teria o poder de fazer o que bem entendesse, o que seria mais justo.

A trama finaliza com uma marcante fala de alguém cujo coração parecia puro, mas agora estava machucado por uma série de maus tratos: Eu acho que o mundo seria melhor sem Dogville.

Há muita reflexão filosófica nessa história, especialmente nas relações como comunidade e nos limites do que é certo e do que é errado. Todos os tais maus tratos, incluindo aí estupro coletivo em uma Grace extremamente fragilizada, é justificada pelo bem maior da comunidade, como forma punitiva a altura dos supostos erros que a forasteira cometera.

Não conhecia a história, nunca cheguei a assistir o filme nem a peça (pessoalmente), mas foi muito interessante assistir da forma como assisti, nessa montagem em alusão aos 02 anos da peça. Entre as filmagens da peça, um mix de apresentações da turnê, havia algumas cenas gravadas por meio do zoom (aplicativo de reunião online), cada ator em sua casa, caracterizados como os respectivos personagens.

Essa técnica me deu a sensação de união entre essa história, que tem como pano de fundo a crise dos anos de 1930 nos EUA (e no mundo, por causa da bolsa de valores), para a atualidade, com essas ferramentas tecnológicas. Além do mais, todas as questões levantadas pela trama continuam sendo extremamente atuais e necessárias de discussão.

O espaço que a equipe e o elenco tiveram para responder as perguntas foi uma oportunidade para entender melhor tudo isso, ver o quão engajados todos são para mostrar a produção. É encantador ver como os artistas, mesmo com tantos obstáculos, estão lutando para que suas produções resistam, para que a arte continue sendo essa comunicação, não só entretenimento.

Quando eu digo engajados não é a toa, parte da equipe é elenco e vice-versa, destacando aí Fernanda Thurann, Lucas Romano e Blota Filho. Os demais artistas em palco eram: Mel Lisboa (Grace), Eric Lenate (narrador … a voz dele ditou o tom de suspense, incrível), Alexia Dechamps. Ana Andreatta, Fernanda Couto, Gustavo Trestini, Marcelo Villa Lobos, Munir Pedrosa, Otto Jr., Rodrigo Caetano (Tom), Rosana Penna e Thiago Furlan.

Como as filmagens mesclam apresentações, podemos ver diferentes elencos. Alguns exemplos são: Grace já foi interpretada por Larissa Maciel, Chuck por Fábio Assunção, Sra. Henson por Chris Couto e Vera por Bianca Byington.

Só para complementar a ficha técnica, valorizando essa produção:

Direção Audiovisual e transmissão ao vivo: Laerte Késsimos

Vídeos de Divulgação: Murilo Alvesso

Assistente de Direção: Lucas Romano

Produção Executiva: Dani D’Agostino

Direção de Produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi

Produção: Diálogo da Arte Produções Culturais

Realização: Sevenx Produções Artísticas e Brisa Filmes

 

As apresentações continuam disponíveis no canal do YouTube da peça “Dogville”.

Só um detalhe: a diferença de qualidade dos trechos e até a troca de atores pode causar estranhamento no começo, mas, no geral, dá para assistir e entender o espetáculo inteiro!

 

Até mais.

 

A imagem em destaque é da página oficial da peça no Facebook.

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